[ Uma carta para os restos mortais] ou [O que sobrou de mim]

Acordei numa sensação de serenata fúnebre.

Corpo pesado de ser, leve de alma e além de mim para essas dores que quase não suporto mais.

Senti o torpor da tristeza, o peso de ser e estar aqui. Viva, porém sem viver.

Quase me rasguei por dentro, pois por fora não sou mais. Sou tudo o que tenho: sou sangue, sou leito, sou fria, sou pálida e sou lágrimas. Sou o silêncio, num sorriso político em sede de acolhimento.

Isso é tudo que tenho para mim, para você e para todos nós. E se já parece pouco para mim, não sobra muito para dividir.

Sou o estrago do desespero, sou suspiro de vida cansada, sou resquício da mentira que se insiste em contar.

Sou bola de neve, pois pálida, pois fria, pois desesperadora e em precipício.

Não sou nada além disto, sou mesmo esse rascunho. Aceite: isso é o que sobrou de mim.

É o que sobrou do antes, é o que ficou do agora há pouco e é o que restou de hoje. Apenas não serei nada amanhã. Acabo logo, tanto o texto quanto o suspiro que me mantém.

Segure-se, não é um forte impacto, mas estou leve. Lembre-se que seu relógio não pára. A vida não é mais do que se tem.

Portanto, aceite a realidade, tudo que eu tenho a fazer é suspirar. Não posso respirar fundo, eu disse: sou suspiro.

Sou fraca, sou leve, sou quase máquina-viva, sou hoje.

Mas, dedico três linhas para o amanhã: Serei passado, um espaço sob a terra em vão, improdutivo às flores, mas terei flores, e se lembrarem (gosto das rosas), pois além disso serei lápide, em uns dizeres breves de Cecília. Que assim seja.

Ao fragmento de espelho:

Olhe para mim. Veja que não posso mais. Conversei com Ele, o Deus. Ele vai me escutar e vai tirar esse suspiro em breve.

Lá não precisarei mais dos medicamentos, nem precisarei mais chorar, não sei se será melhor, mas conforta e o acalento é certo.

Querido fragmento de espelho. Desculpe tê-lo quebrado nessas minhas marés de fúria com a vida, afinal nem é vida de verdade.

Desculpe por te acertar com tanta força, nesse impulso de maldade que saiu de mim.

Eu sei, espelho quebrado não se arruma. Mas a gente dá um jeito nisso.

Olharei sempre em [por] você.

E não te enganarei jamais. Por isso preciso que saiba, ao quebrá-lo te fiz arma letal e me feri. Eu sei que você era para eu me olhar e seguir em frente, mas me cortei em seus pedaços.

E hoje a situação é clara: você está quebrado e eu ferida.

Sejamos bons soldados de vida, siga lutando e mantenha a honra. Não minta, não chore, não deixe de fazer.

Eu não tenho como consertar você, meu querido pedacinho. Posso apenas fornecer uma fita adesiva. Espero que ajude a juntar os cacos e continuar mostrando a quem te olhar o quão bom é seguir em frente.

Querido, por favor, não deixe de dizer sempre a verdade. Espelhos precisam ser assim. Espelhos mostram as coisas como elas são, por pior que seja olhar e ver como as coisas estão é preciso olhar no espelho e reconhecer a verdade. Portanto, não minta para mim.

Hoje eu me quebro, por fim, e me despeço de ti. Grande companheiro. Refletor da minha verdade intrínseca. Aspiração de vida. Mas, deixo aqui a memória que me restou. Em palavras que se perderão, do suspiro que me sobrou, pois tudo que posso te dar é o esforço em escrever. Receba, pois, minhas palavras, como maior forma de gratidão, de apreço e carinho. É tudo que tenho.

Agora, perante você, deixo livre esse lugar onde por tanto tempo me sentei e te olhei...

Querido espelho, hoje és livre para outras paisagens além de mim.

[...]

Ísis Almeida Esth
Enviado por Ísis Almeida Esth em 19/03/2012
Reeditado em 19/03/2012
Código do texto: T3563456
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