O ÚLTIMO ANCIÃO DO GRUPO

Fui ao velório atropelando todos os compromissos, passando por cima das normas, porém, era preciso. Sentia que deveria ficar junto dos que sofriam a perda de um parente. O que partira era idoso, teimoso, mas, naquela hora... Quem ia lembrar-se dos azedumes do velho que jazia imóvel, aparentando um sorriso fixo, cor da morte, caminho de todos nós? Tínhamos que recordar as boas lembranças... Esforçávamos... Como nos esforçávamos! O jeito foi passar o tempo contando história dos tempos antigos. Nessa área, não faltava assunto, e não havia risco de deslizar em área pantanosa.

No meio do grupo estava um idoso, passando dos noventa anos, cheio de vigor, aparentando boa memória, participando da conversa com desenvoltura. Várias gerações trocavam lembranças. Aprendíamos uns com os outros. De vez em quando, ele saía, dava uma voltinha pra depois retornar como se precisasse respirar um pouco ao ar livre. Por curiosidade perguntei-lhe: O senhor parece necessitar dessa escapada, não? Sorrindo, docemente respondeu-me: Fui espiar o velho.

O grupo parecia alheio ao nosso diálogo. E por isso, continuamos sem pressa. “Éramos amigos de longos tempos. Vou sentir saudade do meu amigo”- disse o ancião com voz trêmula. “Andamos muito tempo juntos, enfrentamos léguas e léguas pra cuidar dos roçados alheios, ir à feira, levar ‘minino’ à procura de socorro dos doutor’... Ele era até azedinho, sabe? Mas era um bom amigo. Tinha seus ‘cri-cri’, mas eu ‘arrelevava’.”

Confirmava o que Ele dizia e acrescentei - Eu não tive muito contato com o velho, mas aprendi a aceitá-lo e quando aparecia lá em casa com aquela cede que não passava nunca, prontamente o atendia...temendo sua carranca e seus comentários...vamos dizer...

Ele completou: - Vamos, não tenha medo de dizer. Ninguém vai ouvir mesmo... AZEDO PIOR QUE LIMÃO.

Ri do comentário espirituoso do ancião, e confirmei com um aceno. - Aquele velho não vai mais implicar com ninguém, mas numa coisa posso afirmar: era bom servidor. Ah, sim! Não negava ajuda a ninguém... Mas quando cismava... Pronto, dava ré, e aí era pior do que burro. Tornava o ‘ caldo’ e aí, botava as unhas de fora e sai de perto.

A hora foi passando e eu nem dava conta. Chegando pela manhã, dei uma corrida até em casa, tomei um banho, troquei a roupa que clamava por um tanque, e retornei para a hora mais triste de um velório. Fiz-me de forte, mas na hora que estava para sucumbir, fui salva pelo braço do esposo que me levou para um lugar mais ‘arejado’ e longe de tanto gemido e choro. O ancião permaneceu lá.

Na hora do sepultamento, fiquei à porta do cemitério. Aguardei a volta da família para me despedir. Quando entrei no carro, e fui saindo para pegar a estrada, deparei-me com uma cena que me marcou profundamente. O ancião estava encostado a uma velha árvore. Cabeça curvada, as mãos parecendo desejar adentrar pelo tronco nodoso... Quem sabe tentando passar a dor que lhe transpassava? Fui até ele e perguntei se queria uma carona ou se estava precisando de algo. Levantando a cabeça alva, rosto marcado pelo tempo, respondeu-me com um sorriso triste:

- Não, filha, eu não preciso de nada. Daqui a pouco o toyoteiro vem e me leva pra casa.

Não preciso de nada. ‘Tou me dispidindo’ do meu amigo. - Dando um gemido, acrescentou: ‘Brevimente’ estarei com ele... Afinal, esse é o caminho de nós todos.

Despedi-me, dando-lhe cheiro na testa, e saí dali com um sentimento incapaz de ser traduzido em palavras.

Ione Sak
Enviado por Ione Sak em 15/03/2012
Reeditado em 14/08/2012
Código do texto: T3555395
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