DA HARMONIA

Houve um tempo, há muito, muito tempo, quando eu ainda era jovem, quando ainda era muito virgem de mim, em que eu achava que a harmonia consistia em algo simples, algo natural como uma planta que, devidamente regada, crescia sem problemas. Eu era boa, naturalmente boa - ou assim me julgava - e tudo estava bom e estava tudo certo entre eu e os meus pares - não havia ímpares - no meu mundo.

Os escuros vieram, muito fundos e conheci um universo inóspito em que tudo se tornou Outro e desconhecido e desconhecível - eu, sobretudo,assim como tudo. Duvidei da minha face, duvidei do que me julgava, percebi que a grande maioria dos seres era de ímpares, não de pares, e percebi que eu não era benquista por alguns, muitíssimo pouco benquista e constatei que me era impossível compreender devidamente tal fato, eu, que jamais sonhara nem tentara, intencionalmente, plantar qualquer erva má em nenhum de seus respectivos jardins. A vida tornou-se um Mistério Escuro. E os escuros contaminaram tanto tudo que nublaram até os espelhos meus e os dos poucos pares que restaram no meu pequeno universo pessoal.

Parece-me que, ainda que os tempos escuros não tenham, em termos objetivos, sofrido alteração, em algum lugar de mim está a brotar e a se expandir, como corpo de embrião, o sonho de um Tempo Novo. Ainda apenas um sonho, o sonho, quase a antevisão de um tempo em que se possa viver outro sentido de harmonia,após se ter dado a volta-ao-mundo só de desarmonias, de desarmonias das mais múltiplas naturezas. Apenas um sonho, mas, sinto que eu ainda terei de volta a respiração, a respiração plena, a respiração da qual há muito não me tem sido dado usufruir.

No crepúsculo de 16 de fevereiro de 2012,véspera do carnaval.