Três palavras

chove

como se apesar de tudo não hovesse o desespero

não houvesse teus olhos

não tivesse havido um dia o amor

não houvesse esta distância definitiva entre a gente

não hovesse a tristeza de um dia desconhecido e supérfluo

não houvesse a minha imagem no espelho de fogo

irisando as imagens com evidentes sinais premonitórios

quantos sinais assentes para lá das luzes do dia

para além dos poros táteis da escuridão

um olhar resume a vida

quando se deixa de amar

fica o vício das palavras incompletas

dos gestos desertos

das travessias

dos sustos

fica na saliva um gosto

que não tem princípio nem fim

fica flutuante

em sonhos indecifráveis

nos barcos sem destino

em turvas águas

neste jardim que se afasta

nas sombras deste silêncio não realizado

rumo aos desertos

rumo à poeira de outras vidas

onde as flores de hoje me encontrarão

junto aos poemas inacabados

latentes no eco sôfrego da escuridão anodizada

onde dorme a fragrância breve dos corações

As manhãs ficaram quebradas no teu olhar quase vazio

frio

pólens de poeira sangraram o ar evasivo

desviastes o olhar

virastes o rosto de lado

olhastes para o murmúrio da chuva lá fora

sobejo do dia batendo à porta sibilina de um sonho desabitado

tua voz deslocando-se no ar

inquietante

irascível

ressoando contra as paredes e os móveis do quarto

reverberando no entardecer do meu coração

as palavras indiferentes a tudo

ignoraram os sonhos que inventavam meu mundo

disseram que tudo não passou de um encontro fugaz

de silêncios e de ausências e medos

que a imagem dentro do espelho fendia a realidade

que os dias eram feitos de imutáveis gestos perdidos na inutilidade do tempo

sem atentar que o tempo é o maior segredo

que a dor que esfacela o sentimento é o maior degredo

que os monólogos tristíssimos vergam e volatizam o amor

que a ausência percorre as paisagens agonizantes da memória

extensos desertos ressequidos nas noites insones

mares curvados às notas da dardejante canção envelhecida

a mágoa profunda na voz fragmentada de indeléveis poemas

que já foram ditos

aflito

o sol tateia entre as nuvens vítreas

desfocados espelhos onde me deleito ao ver em meu rosto um ponto final

não me importo

o que me comove é este jeito doce da ilusão imperecível

é esta poesia estridente que nunca se cala

é esta fuga eterna que não sai de mim

são estas estrelas tamborilando nos telhados

caminhando os descalços caminhos da minha infância

entre as rosas de vento

entre os cravos vermelhos

diletos de minha mãe

entre as manhãs e os ventos

nos quais flutuavam minha inocência e meus sonhos de voar

angustiadamente a ouvi dizer que as horas roubadas ao dia que se extravia serviam de nau para o naufrágio da loucura

e que diante das suas certezas nada mais tinha a dizer

a não ser que

a não ser que um sino febril e sozinho

na penumbra do ocaso de um grande amor ao mundo

em bátegas dobrasse versos e poesias

fazendo da vida uma elegia

por sob todos os cantos dos dias

no mais o mundo seria silêncio

um tanto de fuga e desolação

vento escuro

furando a telha

cinza

amianto

vazando a parede

ilusão

naquela hora do dia

agonia

como sobreviver ao eco expectante do não?

(...)

solidão

fez um gesto de silêncio impulsionando o ar prateado

e sem olhar a solidão do meu mundo

dos meus milhões de mortes aos pés de si derrocadas

e o amargo gosto do sangue a pulsar nas minhas veias

armou o barco que arfava no cais dos seus olhos

com vagarezas pendurou segredos e subterfúgios ao timão

equilibrou cabos e velas e tristezas

açodou-se

com seus berloques pendentes

como num mar os filetes de prata pendendo do luar de uma lua exígua

nua e sintética

alçou o barco ao ar

deixando nas nuvens cativas e abstratas

lembranças de algum lugar cadente das madrugadas

de algum amor invisível (inconfessável?)

num céu distante e insone

redesenhado nas palavras metálicas retalhadas em finas lamelas

traçado nas linhas insolúveis de um dia nublado

onde os meus olhos não viam mais os teus

onde doía a condição de continuar vivo

lançou as imprecações como se a ira fosse o cansaço da aquiescência

fragmentos inominados de um outro olhar de desdém

por detrás da máscara a vertigem

um pássaro passou sangrando

a visão de sua ausência

no vôo do pássaro escuto o reflexo dos seus passos

passos se despindo no eco silente da rua

o ar arrastando-se

gris

puído

esgarçado

pelas gotículas de chuva que reduziam tudo a receio

abandono

impiedade

desprezo

a tarde mascada continha inaudível

o visgo amargo e trêmulo das palavras deturpadas pelo

veneno petrificado da repulsa e da mágoa

dormitavam as árvores e o sono

numa tarde amarelecida onde agora ficou

como uma carta devolvida

pela tristeza que se mudou pra algum canto dentro de mim

guardada entre os papéis esquecidos

só este gosto de imperecível novembro

de chuva fininha açodando o abandono dos dias tão banais e melancólicos

espinhos sem flores

fala mordaz

açoites

acendendo a acidez das palavras que

vazaram na atmosfera do quarto emudecendo os sentimentos

refulgindo no vento um murmúrio patético: "Não me interessa"

dito com raiva e com pressa e um insofismável desprezo

as palavras zuniam violentas como brasas calcinando

as arestas de um mundo agudo,

longiquo

vago

vazio

coberto com um céu chovendo pelas nesgas dos soluços

que a própria chuva encobriu

melancolia

flor lilás

precaria eternidade

cegueira flutuando na orla do mar ressequido de Copacabana

abismos abertos no ar

a voz era como a de uma vida anterior

rabiscada em guardanapos de papel chinfrim

espelho volátil refletindo a fala inopinada e raivosa

esquecida na proa de um barco suspirando plúmbeas tempestades

acostado às palavras que em fogo ardiam no sonho roubado à noite

sibilantes desertos ofegando nas ilhas de ilusões que partiram-se

como a luz nos frios prismas ressumando a saudade que, de certo,

não conhecias

ou, se conhecias, só o teu próprio naufrágio te comovia

lâmina tateando a presa por entre imagens dentro de um quarto acidulado

perambulava a tarde sem destino por entre a imutabilidade do passado

e a arrogância incubada na ambigüidade da máscara das veleidades

onde antes morava um olhar agora vicejam

obscuros mundos

retratos flutuantes

rostos sem nome

chuvas confluentes

cúmplices do teu perfume

espreitando o mar e as vagas que adejavam

no ar eclipsado do nojo das palavras ditas à sorrelfa

o grito tácito que desfez as silabas tonitruantes do afeto

em meio ao zumbido das estrelas na noite que se insinuava

metafórica

estilhaços sucumbentes refletidos nas águas do lago

sem voz

na tarde ofuscante

morta como o instante volátil que me olhava do espelho

as palavras reverberavam como um mantra

atado à respiração sufocada pela dor: "Não me interessa"

o mar incendiado estremecendo as palavras cheias de ira

os olhos de tanto faz

procuravam por entre as frinchas dos dedos

nas águas fundas de um rio

as casas abandonadas

aonde moram os longos dias de espera

o rosto incerto

a calidez das mãos

suscetivel de se tornar carinho

alinhavar a sombra dos impenetráveis caminhos

do teu coração

fulvo desvario

cortante

o grito que finge morrer

em meio à noite

sensitiva

enevoada e

fugaz

areia fina

num deserto espesso

frágil lâmina

diluindo-se no rumor

de três palavras incandescentes

dentro das quais queimam os meus dias.

"Não me interessa"