[A Vida sob a Pedra]
[...aquilo sim que era uma vida boa, uma vida-gia!]
Eu era um menino abelhudo, curioso... Certa vez, eu vi uma baita gia, parada, quieta, num solerte descuido estudado, fora da sua loca, espiando... um olho na galinha brava e outro na ninhada de pintinhos. Então, sentei no barranco, e fiquei espiando os olhos da gia gorducha... e imaginei... imaginei... e aí, ela me disse assim:
"é boa a vida embaixo da pedra: sombra de jabuticabeira anosa, pé de figo criado, aguinha mansa correndo por cima e fazendo ondas nas compridas tilangas de lodo... gosto de ficar ali, sem inimigos, sem lutas... vez por outra, uma presa é seduzida e atraída, serve para o meu sustento... e também é só ... aqui na loca sob a pedra, eu sou ninguém, e é bom, eu acho, a gente ser um ninguém... corre menos riscos quem não gasta coragem, não vive nos arrancos de valentia!"
Deixei a gia em paz, e fiquei pensando na vida-gia que ela levava — sem sustos, sem riscos, sem esperanças, nada... Contrariei o que eu imaginei: deu-me assim, uma vontade imensa de sair p'ro mundo, de deixar de ser ninguém... deixar de levar essa vida-gia que eu levo até hoje...
Mas qual... a gia tem razão: é melhor ser mesmo um ninguém! E isto, é o que eu já sou — faço nenhuma diferença na vida dos outros!
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[Desterro, 10 de fevereiro de 2012]