PERDI UM AMIGO em vida.

Por Carlos Sena


 
Um dia eu quis falar do nada e vi que falar do nada é o mesmo que querer falar de tudo. Os contrários nem sempre se atraem e nem sempre se completam. Pra falar do nada eu teria que me debruçar no que para os outros é tudo e naquilo que mesmo sendo tudo, pra mim não significa nada. O ser humano é a circunstancia da sua própria existência. Muitas vezes ele quer ser singular e não deixa de ser plural; noutras é singular na sua pluralidade. Como percebemos ao ser humano foi dada toda uma carga conceitual que nem sempre corresponde a vida real. O que se torna real na vida dos viajantes que buscam novos horizontes para suas vidas? Que vidas se podem tornar verdadeiras se esses mesmos viajantes nunca souberam acerca da verdade que lhes ronda a porta?
Um dia eu perdi um amigo que se foi para a Itália. Até dois anos depois soube notícias dele por ele mesmo. Um belo dia me peguei sentindo sua falta, pois já havia mais de dez anos que a  gente não se falava. O telefone toca e era sua mãe me dizendo que ele estava a passar temporadas no Recife e queria me ver. Aguardei a volta do meu amigo que, nos tempos de criança fazia comigo parelha. Unha e carne como se costuma dizer! De repente lá está ele, sem ser ele. De repente lá estava eu com ele, mas ele não era ele e eu continuava ser eu pra ele. Pouco tempo de conversa foi o suficiente para eu perceber que perdi meu amigo. O meu amigo na forma original eu tinha perdido. Ele perdeu a fala mansa nordestina, perdeu o sotaque insolente, perdeu a picardia que era sua marca registrada. Perdeu seu corpo e habitava outro corpo obeso que lhe dificultava a deambulação. Não suportei a pouca conversa, pois eu não conseguia me conectar com ele nem perceber que ele se conectara comigo. Estava ali, na minha frente, o tudo e o nada no formato original. O que um dia tudo foi pra mim em termo de amizade, nada me dizia mais, exceto que não era mais o meso em essência, em representação simbólica da nossa amizade supostamente sólida...
Impressionou-me aquela forma de reconstrução em que tentamos reaver velha amizade. Ficou no que estava, ou seja, não ficou mais nada do pouco que só restava. Hoje, na minha tela mental, tenho a imagem de duas pessoas distintas: a que um dia conviveu comigo desde o interior, até aquela pessoa que depois de décadas retorna, mas não consegue retomas o afeto.
Hoje eu não sei dele  nem sei se ele sabe de mim como deveria se tudo não tivesse ido. O que se foi com ele foi o tempo pretérito. Talvez por isto ele não tenha tido a capacidade de se remeter aos laços de amigos, talvez nem da sua família. Tudo? Nada? Não sei. Pode ser, mas tudo pode igualmente ser novamente para se recompor na originalidade. A vida se refaz pelo princípio da amorização muito mais do que da razão. O pensamento voa, a razão povoa. O pensamento pensa, a razão dispensa. O pensamento prensa a razão imprensa...