Anti-Ser
Anti-Ser
Nunca pensei que a cidade poderia ser ainda mais bonita a esta altura. E mesmo agora, depois de tanto tempo, esta vista sempre me impressiona, especialmente ao pôr-do-sol, quando sua luz esta mais fraca, e ele não mais consegue me ofuscar. Há muito tempo, notei que por uma fração de segundo, durante o crepúsculo, todo o mundo é subjugado por um profundo silêncio. É como se o mundo todo parasse para os mortais, e apenas os anjos, que aqui estão, se aproveitassem deste lapso no tempo para consertar as coisas que não conseguiram ao longo do dia. Hoje em dia, tenho certeza que isso realmente acontece. Agora mesmo, estou no momento dourado dos anjos. Irônico... Será que eles têm olhos para mim neste instante?
Como aqui em cima está frio. Sinal de que meus sentimentos continuam os mesmos de antes. O vento que vem do leste está fresco. Faz-me lembrar do vento no meu rosto, quando na infância, ia e vinha no balanço de cordas do jardim. Minha mãe gritava quando entrava suado em casa o e ia direto para a geladeira beber água gelada. Mas depois de um carinhoso afago, me explicava coisas sobre choque térmico e várias outras coisas que eu não conseguia entender. Tive uma boa infância, fui cercado de afeto e durante ela, não havia tido depressão ou aqueles pensamentos de retirar de mim próprio o que me era mais precioso.
Daqui de cima, lembro das várias vezes que precisei acompanhar meu pai até o telhado de nossa antiga casa, para ajeitar a antena de TV, quando a ventania a deslocava do lugar. Eu tinha vertigens fortes naquela época. Agora, quando me vejo aqui, sei que estou curado. Aliás, curado de várias outras coisas. Não tenho mais vontade de fumar, nem de gastar dinheiro com bebidas ou drogas. Não sinto mais as dilacerantes dores das abstinências que me eram impostas. Hoje sei que tudo aquilo era para o meu bem.
O sol não se move do lugar. Há mais de uma hora que tudo está na mais doce letargia. Apenas o vento toca gentilmente a minha face, assim como a minha mãe fazia. Ah... E eles... Eles sempre apressados neste momento.
O reflexo dourado do sol sobre a água do oceano, lembra-me os cabelos da mulher que amei. Da mulher que ainda amo. Embora ela nunca tenha tido conhecimento deste amor, porque fui covarde em compartilhar. Se pudesse me comunicar com ela, falaria do meu amor, sem esperar nada em troca, nenhuma resolução ou reciprocidade. Aquele amor vivia por conta própria. E vive!
Vejo carros e pessoas vagarosamente lá em baixo. O tempo voltou ao normal. Olho meus pés descalços na sacada do terraço deste prédio, eles estão sempre pálidos. Logo penso no quanto este ligar inexistia para mim em vida. Até a hora que decidi vir até aqui e me arremessar ao espaço que se tornou a extensão do que foi meu breve futuro. Aproximadamente 5 segundos e meio de uma queda que terminou de modo instantâneo. Aos que sentem curiosidade, são os cinco segundo mais longos de sua vida, e realmente uma retrospectiva dela passa diante de teus olhos. Não se morre ou desmaia durante a queda, tudo não difere de um processo muito consciente. Durante a queda, quando o organismo detecta o inevitável, sente-se uma dor aguda no abdome, e como uma onda de choque é radiada para todo o corpo. Ao tocar o solo, não se sente mais dor. A morte é instantânea. A energia acumulada durante a queda, mostra a sua força. Chegamos lá em baixo com o peso multiplicado. O crânio se rompe e a inércia faz com que o cérebro continue a descer, como se quisesse atravessar o solo, mas não consegue então se espatifa. O coração explore de pressão e os pulmões são perfurados pelas costelas, que se dobram para dentro. O fígado quase se liquefaz. Mas larguemos os pequenos detalhes.
Hoje estou aqui no lugar onde começou a minha morte, assim como ontem e anteontem, e assim como em todos os dias após o último dia.
Se me perguntar se tive reais motivos para fazer o que fiz, não saberei responder. Acho que obsessão, curiosidade, imaturidade e irresponsabilidade. Depois que se morre, se amadurece muito. Um dia saberá do que estou falando. Para os que pensam que vamos para um lugar horrível depois que tiramos nossas vidas, estão errados. Eu sou prova viv... Bem, sou prova disso. Mas em contrapartida, recebemos um presente: O tempo. O tempo no dia “D” na hora “H”, que se repete todos os dias durante toda a eternidade. Não existe aqui a reação ao arrependimento. Angústia é viver num tempo onde fatalmente continua passando apenas para as pessoas que você amou em vida. Meu inferno é o parapeito da sacada deste velho prédio, que fica em frente a este velho parque, perto desta linda praia. Meu inferno é ter muito tempo para não poder amar, ter muito tempo para acompanhar em morte a vida das pessoas que conheci, sem ao menos participar delas. Triste. Se perguntar se estou arrependido? Claro! Mas como disse anteriormente, aqui não existe reação ao arrependimento. Estou ainda pagando pelos meus atos com a evolução do meu anti-ser. E para celebrar a vida, dirijo-me através desta para entregar-lhe um presente, sim, a você! Um presente que infelizmente nunca me foi entregue, e talvez se fosse, eu não tivesse aceitado, ou simplesmente não o reconheceria como tal, pela falta de sensibilidade. Meu presente a você é a oportunidade de repensar sua vida, enquanto viva, enquanto ainda há tempo para mudá-la, interferir e progredir nela. Não se arrependa de nada que tenha feito, mas não faça nada pelo que possa se arrepender posteriormente. Seja impulsivo na reflexão e reflexivo na impulsão. Ame, ajude, corra riscos, brilhe e faça tudo em prol do bem. E sempre ame a sua vida como um presente que você não poderia viver sem.
Esses são meus mais profundos desejos a você.
Paulo Henrique Felden Dourado. (1969 – 1984)
Duke Webwriter
08 de janeiro de 2007