TESTAMENTO DE UM VELHO QUE PARTE

Estou num tempo

Que hoje sei não é meu

Estou num tempo

Que me negam a memória

Falha de um velho aposentado

De um velho que vive num tempo

E ignora o tempo

Porque só existe, mas não vive.

Um velho aposentado

Que quando viveu produziu

E que já velho e cansado

Descartaram como coisa velha.

Um velho que chegado seu fim

Olhou para os lados

E viu que o sol não tinha o mesmo brilho,

As flores o mesmo cheiro,

A infância a mesma inocência.

Um velho que já não tem mais memória

Um velho que esquecera o primeiro amor,

As primeiras palavras.

Um velho que já não mais sente

A água da chuva a cair sobre o rosto.

Um velho que olha a terra

E vê o quanto esta seca.

O tempo do sol,

Das flores,

Da infância inocente

E da terra fértil,

Já não pertencem a esse mundo.

O tempo desse velho,

Que viveu e viu outros verões

Ficou ofuscado pelo avanço

Da ciência,

Da ciência, a nova promessa de tempos felizes

Da ciência, da promessa de colheita farta e miséria zero

Da ciência, da promessa de mais lazer e menos trabalho

Da ciência, da promessa de mais saúde e menos doenças.

O tempo desse velho, passou

E ele com lágrimas nos olhos,

Recostado na sua cadeira de balanço,

Nada fala,

Apenas olha para a rua

E vê seus vizinhos absortos nos seus afazeres

E conclui que seu tempo era outro

E fecha seus olhos e sorri,

E como uma criança a caminho do parque,

Vai para a viagem sem volta.