RELATIVIDADE
A paixão é uma loucura. É uma ligação direta entre um vulcão e um furacão. A gente se sente queimar por dentro e por fora agimos de forma estabalhoada, levando tudo que encontramos pela frente. Apaixonar-se é bom e é ruim. É bom porque dá sentido à nossa vida. É ruim porque não nos deixa pensar em mais nada.
Sabe, Maria Eunice, eu estou aqui nesta janela para o mundo, olhando a noite sem lua no céu, a cidade dormindo lá baixo, e penso em você dormindo ao lado do Odair, aquele idiota da Polícia Militar com quem você casou e acabou se tornando uma mulher cheia de filhos como ele queria.
Como é a vida da gente, não é? Ficamos mais ou menos um ano juntos e pouca gente viu uma paixão como a nossa. Ninguém diria que íamos terminar assim, eu num quarto de solteiro, solitário, e você uma matrona cheia de filhos, irreconhecível, amarga, que dorme e sonha, mas não os sonhos proféticos, que são aqueles que se sonham acordados, e se projetam no futuro e se tornam planos quando a gente acredita e tem vontade de realizá-los.
Nós tínhamos tantos sonhos, não é, Maria Eunice? Eu queria ser artista, você queria ser professora. Não fomos nem uma coisa nem outra, eu porque não tive coragem de comprometer-me com o princípio do ideal e você porque resolveu seguir até o fim o princípio do desempenho. Sim, se eu tivesse tido a coragem de perseguir o meu sonho com a mesma paixão que eu sentia por você e se você tivesse a coragem de deixar a sua paixão por mim guiar você, possivelmente estaríamos juntos agora, você com seus alunos, eu no rádio ou na televisão, fazendo os meus programas, e nós dois pobres como Jó, mas talvez mais felizes do que estamos agora.
Você se lembra, quando nos conhecemos eu estava começando a fazer alguma coisa nesse sentido. Trabalhava num parquinho de diversões como locutor. Tocava as músicas da hora, que os freqüentadores pagavam para ser tocadas e oferecidas para os garotas e garotos que eles estavam paquerando.
“ Ouviremos agora Roberto Carlos cantando de sua autoria “Eu te Amo”. Música que ....oferece para...como prova do seu imenso amor.”
E ai entrava o Roberto cantando a sua canção. Eu ganhava uma pequena porcentagem do dinheiro arrecadado com as músicas que eu tocava. Então imaginei um meio de aumentar a minhas rendas. Como eu gostava de escrever versos, comecei a intercalar, com a músicas, uns poemas em louvor á pessoa a quem a música era oferecida. Então de repente, em meio à voz do Altemar Dutra cantando “Sentimental Demais”, lá surgia eu declamando uma poesia da minha lavra:
“Esplêndidos são teus olhos - brilhantes, profundos!
São como espelhos que refletem a luz da sedução
Que vem de longe, talvez até de outros mundos,
Onde Deuses bacantes se incendeiam de paixão.
Santificado é o sol que beija o teu rosto iluminado!
Seus raios são os cachos de um vinhedo de delícias,
Colhidos pelas mãos daquelas deusas do passado
Quando a terra ainda era uma oficina de primícias.
Fantástico será o dia, que naturalmente me ofertares
Esses lábios rubros, fonte viva de doces prazeres,
Para eu beber teu beijo, esse nectar incomparavél .
Magnífico será o momento mágico em que aceitares,
O amor que capitalizo em cada um dos meus haveres
Para oferecer-te como um dote, tesouro inesgotável.
Ou então, botava no prato da vitrola o Dilermando Reis tocando o “Abismo de Rosas”, e no meio enfiava uns versos do Castro Alves ou do Olavo Bilac.
“ É meia-noite...e rugindo
Passa triste a ventania.
Como um verbo de desgraça,
Como um grito de agonia.
E eu digo ao vento, que passa
Por meus cabelos, fugaz:
“Vento frio do deserto,
Onde ela está? Longe ou perto?”
Mas como um hálito incerto,
Responde-me o eco ao longe:
“Oh! Minh’amante, onde estás?...”
(...)
“Cheguei, chegastes, vinhas fatigada
e triste. E triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada
E a alma de sonhos povoada eu vinha.”
(...)
Os freqüentadores gostavam e eu logo ganhei um público. Tinha gente que ia ao parquinho só para pedir que eu tocasse uma canção e encaixasse uma poesia para sua musa ou para o seu pretendido. Posso dizer que acabei formando alguns casais que ainda estão juntos até hoje. Essa foi, entretanto, a minha grande realização artística. Infelizmente não consegui passar disso, um Hélio Ribeiro de parquinho. Mas vou dizer uma coisa para você. Não tenho memória mais deliciosa que essa. A não ser as lembranças de nós dois. A minha carreira de radialista ou jornalista ou qualquer coisa parecida poderia ter dado certo se não fosse a revolução redentora. Da mesma forma que nós dois poderíamos estar juntos agora se...
Mas não quero lembrar disso agora, Maria Eunice. Está tão bom falar com você, eu aqui desta janela, nesta noite de Lua Nova, você aí na sua cama, provavelmente dormindo, mas de certo sonhando, não aqueles sonhos que a gente sonhou juntos, mas os sonhos que uma mulher comprometida com o ideal do desempenho costuma ter depois de ter trabalhado o dia inteiro e não ter recebido sequer um obrigado por tudo que fez. E os generais já reconheceram a sua incompetência para governar, os milicos já voltaram aos quartéis, onde é o lugar deles, os políticos já retomaram os seus lugares e estão roubando a gente de novo, como eles faziam antes dos militares tomarem o poder. Gozado isso. Os militares deram o golpe com a justificativa de que os políticos de direita eram todos ladrões e os de esquerda queriam transformar o país numa república soviética. E foi exatamente isso que eles fizeram. Saquearam o país durante vinte anos e o transformaram numa economia de estado, pior que muitos países socialistas. Por será, Maria Eunice, que nós temos essa tendência de criticar nos outros aquilo que nós mesmos gostáriamos de fazer?
Acho que é porque tudo muda, Maria Eunice. A gente pensa uma coisa quando está num lugar, mas quando muda de lugar o pensamento é outro. Esse é úma curiosa consequência da teoria da relatividade. Em cada ponto do espaço que a gente se coloca, temos visão diferente do mundo. Se eu sair desta janela, onde estou fazendo estas reflexões e sentar na minha cama, certamente meus pensamentos já serão os mesmos. Se eu for à cozinha tomar um copo de água, eles já terão mudado de novo. Se, ao invés de um copo de água, for uma cerveja, eles já serão diferentes. São as relações que estabelecemos com o mundo, Maria Eunice. Cada relação, por ínfima que seja, pode mudar toda a nossa vida.
A paixão é uma loucura. É uma ligação direta entre um vulcão e um furacão. A gente se sente queimar por dentro e por fora agimos de forma estabalhoada, levando tudo que encontramos pela frente. Apaixonar-se é bom e é ruim. É bom porque dá sentido à nossa vida. É ruim porque não nos deixa pensar em mais nada.
Sabe, Maria Eunice, eu estou aqui nesta janela para o mundo, olhando a noite sem lua no céu, a cidade dormindo lá baixo, e penso em você dormindo ao lado do Odair, aquele idiota da Polícia Militar com quem você casou e acabou se tornando uma mulher cheia de filhos como ele queria.
Como é a vida da gente, não é? Ficamos mais ou menos um ano juntos e pouca gente viu uma paixão como a nossa. Ninguém diria que íamos terminar assim, eu num quarto de solteiro, solitário, e você uma matrona cheia de filhos, irreconhecível, amarga, que dorme e sonha, mas não os sonhos proféticos, que são aqueles que se sonham acordados, e se projetam no futuro e se tornam planos quando a gente acredita e tem vontade de realizá-los.
Nós tínhamos tantos sonhos, não é, Maria Eunice? Eu queria ser artista, você queria ser professora. Não fomos nem uma coisa nem outra, eu porque não tive coragem de comprometer-me com o princípio do ideal e você porque resolveu seguir até o fim o princípio do desempenho. Sim, se eu tivesse tido a coragem de perseguir o meu sonho com a mesma paixão que eu sentia por você e se você tivesse a coragem de deixar a sua paixão por mim guiar você, possivelmente estaríamos juntos agora, você com seus alunos, eu no rádio ou na televisão, fazendo os meus programas, e nós dois pobres como Jó, mas talvez mais felizes do que estamos agora.
Você se lembra, quando nos conhecemos eu estava começando a fazer alguma coisa nesse sentido. Trabalhava num parquinho de diversões como locutor. Tocava as músicas da hora, que os freqüentadores pagavam para ser tocadas e oferecidas para os garotas e garotos que eles estavam paquerando.
“ Ouviremos agora Roberto Carlos cantando de sua autoria “Eu te Amo”. Música que ....oferece para...como prova do seu imenso amor.”
E ai entrava o Roberto cantando a sua canção. Eu ganhava uma pequena porcentagem do dinheiro arrecadado com as músicas que eu tocava. Então imaginei um meio de aumentar a minhas rendas. Como eu gostava de escrever versos, comecei a intercalar, com a músicas, uns poemas em louvor á pessoa a quem a música era oferecida. Então de repente, em meio à voz do Altemar Dutra cantando “Sentimental Demais”, lá surgia eu declamando uma poesia da minha lavra:
“Esplêndidos são teus olhos - brilhantes, profundos!
São como espelhos que refletem a luz da sedução
Que vem de longe, talvez até de outros mundos,
Onde Deuses bacantes se incendeiam de paixão.
Santificado é o sol que beija o teu rosto iluminado!
Seus raios são os cachos de um vinhedo de delícias,
Colhidos pelas mãos daquelas deusas do passado
Quando a terra ainda era uma oficina de primícias.
Fantástico será o dia, que naturalmente me ofertares
Esses lábios rubros, fonte viva de doces prazeres,
Para eu beber teu beijo, esse nectar incomparavél .
Magnífico será o momento mágico em que aceitares,
O amor que capitalizo em cada um dos meus haveres
Para oferecer-te como um dote, tesouro inesgotável.
Ou então, botava no prato da vitrola o Dilermando Reis tocando o “Abismo de Rosas”, e no meio enfiava uns versos do Castro Alves ou do Olavo Bilac.
“ É meia-noite...e rugindo
Passa triste a ventania.
Como um verbo de desgraça,
Como um grito de agonia.
E eu digo ao vento, que passa
Por meus cabelos, fugaz:
“Vento frio do deserto,
Onde ela está? Longe ou perto?”
Mas como um hálito incerto,
Responde-me o eco ao longe:
“Oh! Minh’amante, onde estás?...”
(...)
“Cheguei, chegastes, vinhas fatigada
e triste. E triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada
E a alma de sonhos povoada eu vinha.”
(...)
Os freqüentadores gostavam e eu logo ganhei um público. Tinha gente que ia ao parquinho só para pedir que eu tocasse uma canção e encaixasse uma poesia para sua musa ou para o seu pretendido. Posso dizer que acabei formando alguns casais que ainda estão juntos até hoje. Essa foi, entretanto, a minha grande realização artística. Infelizmente não consegui passar disso, um Hélio Ribeiro de parquinho. Mas vou dizer uma coisa para você. Não tenho memória mais deliciosa que essa. A não ser as lembranças de nós dois. A minha carreira de radialista ou jornalista ou qualquer coisa parecida poderia ter dado certo se não fosse a revolução redentora. Da mesma forma que nós dois poderíamos estar juntos agora se...
Mas não quero lembrar disso agora, Maria Eunice. Está tão bom falar com você, eu aqui desta janela, nesta noite de Lua Nova, você aí na sua cama, provavelmente dormindo, mas de certo sonhando, não aqueles sonhos que a gente sonhou juntos, mas os sonhos que uma mulher comprometida com o ideal do desempenho costuma ter depois de ter trabalhado o dia inteiro e não ter recebido sequer um obrigado por tudo que fez. E os generais já reconheceram a sua incompetência para governar, os milicos já voltaram aos quartéis, onde é o lugar deles, os políticos já retomaram os seus lugares e estão roubando a gente de novo, como eles faziam antes dos militares tomarem o poder. Gozado isso. Os militares deram o golpe com a justificativa de que os políticos de direita eram todos ladrões e os de esquerda queriam transformar o país numa república soviética. E foi exatamente isso que eles fizeram. Saquearam o país durante vinte anos e o transformaram numa economia de estado, pior que muitos países socialistas. Por será, Maria Eunice, que nós temos essa tendência de criticar nos outros aquilo que nós mesmos gostáriamos de fazer?
Acho que é porque tudo muda, Maria Eunice. A gente pensa uma coisa quando está num lugar, mas quando muda de lugar o pensamento é outro. Esse é úma curiosa consequência da teoria da relatividade. Em cada ponto do espaço que a gente se coloca, temos visão diferente do mundo. Se eu sair desta janela, onde estou fazendo estas reflexões e sentar na minha cama, certamente meus pensamentos já serão os mesmos. Se eu for à cozinha tomar um copo de água, eles já terão mudado de novo. Se, ao invés de um copo de água, for uma cerveja, eles já serão diferentes. São as relações que estabelecemos com o mundo, Maria Eunice. Cada relação, por ínfima que seja, pode mudar toda a nossa vida.