Sim, Maria Eunice. Talvez se eu tivesse casado com você eu não estaria nesta janela sobre o mundo, nesta noite em que a luz do sol ofusca a luz da lua com a arrogância de um astro ciumento, e sobre o firmamento somente uma miríade de estrelas sem conta que me dá a sensação de quanto eu sou pequenino perante a imensidão do universo. Milhares, milhões de pontos luminosos piscam como pequenas lâmpadas penduradas num teto convexo. Quantas dessas estrelas já morreram há muitos milhares de anos, mas só agora a sua luz está chegando à terra? Talvez, Maria Eunice, se você saísse agora à sua janela e olhasse para aquela estrela que emite uma luz azulada, como de um lampião de gás numa rua escura, você estaria olhando para o passado. Lá, se você tivesse olhos para ver, poderia estar contemplando um mundo que deixou de existir há milhões de anos atrás.
Penso no nosso próprio passado. Será que também já não deixamos de existir há muito tempo? Certamente para alguém que estiver num ponto qualquer do universo, numa janela igual a esta, e estiver olhando o nosso planeta de uma perspectiva futura, o que ele está vendo é um planeta que já morreu.
E aí eu penso. O passado já aconteceu para quem? Para nós, certamente. Mas para quem estivesse plantado em ponto no tempo justamente atrás de nós ele estaria acontecendo ainda. O que passou deixou de existir ou apenas ficou para trás como uma estação de trem que acabamos de passar em uma viagem por via férrea, ou um carro que ultrapassamos numa estrada? Se voltarmos sobre os nossos passos, pelo mesmo caminho, a estação o carro estarão lá, no mesmo lugar e com a mesma conformação? De certo que não, pois eles também se movimentam. Isso quer dizer que eu pudesse voltar àqueles anos em nós começamos a namorar, eu dificilmente encontraria você no mesmo lugar, com a mesma aparência física e com o mesmo sentimento. Nem nas nossas lembranças, Maria Eunice, que são um arquivo das nossas experiências, as coisas continuam as mesmas. Isso porque as nossas memórias são registradas numa linguagem muito específica, sabia? Elas são registradas com códigos que a nossa mente criou para dar uma identidade às coisas. São padrões de cor, brilho, distância, moldura, profundidade, localização, contraste, claridade, movimento, luminosidade, enfim, tudo que os nossos olhos vêem no mundo e transmitem ao cérebro como informação.
Lá encontraremos também as informações sonoras, com suas características de timbre, volume, tom, localização, distância, duração, continuidade, velocidade, etc. e também as cinestesias, ou seja, os sentimentos que experimentamos em nossa vida, registrados por suas características de localização, intensidade, pressão, temperatura, extensão, textura, peso, aroma, forma, e tudo mais que identifica uma sensação.
É por isso, Maria Eunice, que a nossa mente classifica as coisas conforme o que vê, escuta ou sente. Então dizemos que isso é claro ou escuro, que está perto ou longe, que é lento ou rápido, grande ou pequeno, que está parado ou se movimentado etc.. Ou se estamos falando de coisas que escutamos, dizemos que está alto ou baixo, agudo ou suave, perto ou longe, que é contínuo ou interrompido, rápido ou lento, etc. Em se tratando de sensações dizemos que é insípido ou saboroso, inodoro ou cheiroso, doce, amargo, azedo, suave, áspero, quente, frio, pequeno, grande, longo, espesso, áspero e assim por diante, conforme for a sensibilidade que temos do objeto. A nossa mente, Maria Eunice, precisa desses códigos para identificar o mundo. Por isso, quando eu me lembro de você, o que a minha mente recupera é o azul que eu vi nos seus olhos, o negro dos seus cabelos, o rubro dos seus lábios, a cor da sua pele, o conjunto da sua postura, a sua forma de andar, de se vestir; e lembro também do timbre da sua voz, que eu achava sensual, porque era suave e parecia estar sempre perto, porque você falava baixo, como se não quisesse ser ouvida por ninguém mais além da pessoa com quem estava falando. E quando penso no seu corpo, Maria Eunice, eu recupero as informações do seu abraço quente, apertado, do seu beijo molhado, do seu perfume suave e embriagante, das suas mãos pequenas e macias e da sua pele sedosa como pétalas de rosa. Por tudo isso, Maria Eunice, você pode ver como eu recepcionava você em minha mente. Eu a via como um modelo de perfeição e beleza, por isso é que lhe fiz aquele soneto. Você se lembra?
“Eu nem preciso ordenar imagens coerentes
Para dar-te versos de fidelidade irretocável,
Porque em tudo que de ti me vem à mente,
Vejo instantâneos de beleza incomparável.
Não sei de registros anteriores doutra visão,
Que fosse farta para mostrar-te com justeza,
E que aos olhos confirmasse esta impressão,
Que o paraíso é no teu corpo, com certeza.
Talvez eu tenha me enganado de portão,
E ao invés da concretude de um evento,
Tenha entrado no abstrato de uma lenda,
Onde Deus, no exercício pleno da profissão,
Ou se superou na perfeição do seu talento,
Ou fez mais do que pedi na encomenda.”
“Que exagero”, você disse. Mas era assim mesmo que eu via você. E eu era metido a poeta. Poeta, você sabe, vê o que outros não vêem, escutam o que outros não ouvem, sentem além do que é próprio sentir a todos aqueles que vivem pelo principio do desempenho. Por que, como eu disse, poeta vive pelo princípio do ideal. Então eu idealizava você. Mais que uma mulher que eu podia abraçar, beijar, tocar, trocar prazer e conforto físico, havia também uma interação de espírito que você talvez não compreendesse, mas que para mim era necessária que existisse para que eu me sentisse realmente feliz.
Pois é, Maria Eunice. Quando eu recupero as memórias da nossa experiência interativa acontece uma coisa interessante. Eu não consigo mais ver seu rosto com nitidez. Nem consigo me lembrar exatamente do timbre da sua voz. Essas informações me vêm como se eu estivesse olhando para uma foto esmaecida pelo tempo, uma foto que os anos coloriram de um amarelo cinzento que prejudica a nitidez. E o som de sua voz parece que chega de muito longe. No entanto, parece que as informações cinestésicas estão aqui ainda com todo o conteúdo com que foram registradas. Penso em seu beijo e ainda sinto o gosto; abraço você e ainda sinto o calor; toco em sua pele e a minha ainda registra aquela textura de pétala de rosa; penso no nosso contato físico e a âncora sexual é imediatamente levantada..
Decididamente, Maria Eunice, eu sou mesmo um sujeito muito cinestésico. A cinestesia dos sentidos, Maria Eunice, essa é toda a concessão que eu faço à concretude do mundo.
Cinestésico? Ah! Você mesma dizia que eu era. Lembra-se que você dizia que eu tinha muito fogo? Eu tinha e foi nele que me consumi.