DISFARÇADO DE MIM

Por Carlos Sena


 
Eu tenho andado meio sozinho disfarçado de mim. Tentando fazer domingo na segunda-feira, tentando ser da solidão uma aventura passageira enquanto o dia não se disfarça em companhia e a noite não se despe em meu imaginário. Eu tenho andado meio sozinho disfarçado de mim sem deixar de me ser, de me ter, de me amar. Se ainda ontem eu não estive sozinho, hoje continuo sem estar, mas ao alcance da mão nada me resta. Do alto da minha janela, uma fresta me mostra a negritude da noite que camufla meu ser insólito dentro das minhas metades. Em meu redor, há perfumes que a porta entreaberta não consegue reter – são meus amanhãs que, pouco a pouco se despedem de mim, como se as estações todas estivessem em mim se repetindo como forma de alerta.

Eu tenho andado meio sozinho disfarçado de mim – pela certeza de que além mar não se encontra o amor que se sonha. Nem sempre o amor se traduz em sonho, porque a vida também nos conduz a episódios em forma de pesadelo. O amor! Ah, como é difícil o amor em sua construção de liberdade – amor opção, amor intempérie, amor contradição ente o novo e o velho, entre o jovem e o seu contrário, entre a ópera e o operário. Amor sem fim ou com final avesso. Amor imenso, amor meteórico, amor além da conta.

Há, no amor, mistérios a mais que o que imaginamos. Há nele, a contradição do viver acompanhado e só ao mesmo tempo. Do ser jovem e velho ao mesmo tempo. Do ser inverno e ser outono ao mesmo tempo. Do ser o tato e o trato ao mesmo tempo. Do ser ao mesmo tempo sem ser o tempo que não é o mesmo. O mesmo do amor é a disposição da esperança que não morre verde. A esperança é o grande substrato do amor, pois dela a gente se cansa sem desesperar e espera num cansaço bom, como se da música não fôssemos o tom, mas a nota que faltava pra sinfonia harmônica.

Eu tenho ido mais ao amor do que ele vindo a mim. Minha porta se abre pouco para o amor entrar. Ele entra, adentra, incensa e ora fica, ora vai, ora se esvai pelas ondas do rádio. “Escuta esta canção que é pra tocar no rádio, no rádio do seu coração”... Assim é o amor que toca. Assim é o amor que troca. Troca a dia pela noite; troca o fim pelo começo. Invade um dia de domingo como se o mundo fosse acabar até que a segunda-feira mostra a cara da realidade concreta. Eu tenho andado meio sozinho disfarçado de mim.

Eu tenho andado meio
Eu tenho andado disfarçado de mim
Entre ontem e hoje...

Amanhã o amor vai me seguir pegadas como se a vida não fosse doida e varrida. A vida às vezes é bandida mesma pela própria incerteza de que nossos passos não se definem em trajetórias próprias. O destino, não raro, nos ignora os sonhos. A gente sonha mesmo assim, porque dos sonhos nascem as nossas audaciosas formas para ser feliz. Mesmo sabendo que não se pode ser meio feliz, mas a gente tenta, inventa formas de ser inteiro, total, completo, até que um dia, até talvez, até... Quem sabe? Disfarçado de mim, descubro-me nu, despido das mais idiotas vaidades que fazem dos homens fortes por fora e frágeis por dentro.

Disfarçado de mim, vejo no espelho as pratas dos meus cabelos e consigo ver o ouro que por dentro de se mantém até que um dia, até talvez, até... Quem sabe?