CIGANA
Coisa terrível essa face dupla. A mais doce também. Em mim esse duplo rosto. Dulce e terrível no teu rosto de índio, companheiro meu por quase vinte anos. Terrífico e dulcíssimo no vosso rosto de pedra, musgo e neve, amor impossível dos impossíveis nomes de mim, impossível amor dos muitos séculos de mim.
O rosto duplo que me transformou na cigana que já não posso ser nem jamais poderei deixar de ser. A cigana a viver em tendas antípodas, agora apenas tendas pretéritas, imaginárias, que agora eu sempre apenas e tão somente entre as quatro paredes sólidas deste apartamento onde me vejo apartada de mim, de ti, de vós. Fora eu cigana de verdade, todos os lugares seriam meus, tudo me seria Pátria; aqui, não me pertenço em lugar nenhum.
E tudo por enquanto só passado. Meu livro, que é o filho prestes a chegar. Meu livro no qual conto o possível de ser contado do teu, do vosso, do nosso rosto. Que nos adivinhem os leitores que vierem para nos conhecer. Que nos adivinhem nesses três rostos que não temos mais, nos rostos que, certamente, não teremos nunca mais.
Republicação na tarde de 27 de dezembro de 2011.