PARA OS QUE NÃO TÊM QUEM POR ELES SINTA SAUDADE.
Por Carlos Sena
Por Carlos Sena
Hoje eu acordei com saudade dos que não têm quem por eles saudade sinta. Acordei com saudades do mendigo que, no natal do ano passado, dormindo no calçadão de Boa Viagem, teve seu radinho de pilha roubado. Um policial que ia passando de bicicleta alcançou o larápio e o devolveu. Por bem se poderia ver a alegria dele me mostrando o radinho outrora roubado!
Hoje eu acordei com saudade dos que não têm quem por eles saudade sinta. Daquela prostituta que, após a missa do galo, interpelou o Dom lhe perguntando se o fato de “dormir” com um detento sob forma de presente de natal, seria pecado. Ele, como o seu Dom de sabedoria lhe respondeu: pergunte a sua consciência!
Hoje eu acordei com saudade dos que não têm quem por eles saudade sinta. Com saudades daquele doente de hanseníase que, diante do seu colega de quarto já sem as duas pernas, sempre lhe dizia o que via pela janela do quarto. Dizia que o dia estava lindo e que o rio estava caudaloso com vários pescadores em seu derredor. Dizia todo dia novas coisas bonitas para alegrar a vida do colega que não mais mexia da cama. Um dia o contador de história faleceu e deixou seu amigo sozinho no quarto sem mais ouvir acerca do que se passara lá fora, do outro lado da janela. Cansado de tanta solidão, foi bolando pela cama e, com ajuda de um visitante, alcançou a janela, sedento para ver uma paisagem diferente, bucólica, para sua alegria. Surpresa: do outro lado da janela existia um pátio fétido, cheio de porcos e lama! Nenhum rio, nenhum pescador, nenhum sol brilhante!
Hoje eu acordei com saudade dos que não têm quem por eles saudade sinta. Saudade dos abandonados pela família nos abrigos, porque envelheceram! Que jogados como “entulhos” humanos, reúnem-se em cada natal com seus colegas de abrigo para somar as suas solidões. Saudades das saudades deles pelos filhos que geraram, pelos maridos que amaram e que lhes abandonaram... Eles buscam entre si a pele viçosa que o tempo levou; o afeto que a vida subtraiu sem complacência; as imagens que a televisão não mostra porque se perderam na íris dos que um dia lhe traíram no amor.
Hoje eu acordei com saudade dos que não têm quem por eles saudade sinta. Daquela criança que a mãe jogou no lixo; daquele cachorrinho que a enfermeira matou aos poucos, aos chutes, para que sua filha se divertisse com aquela barbárie; saudades dos meninos que foram mortos na escola no Rio de Janeiro deixando seus pais sem natal pro resto da vida; saudades do índio Galdino que morreu incendiado pelos riquinhos de Brasília e que hoje estão soltos, bem empregados, ignorando que índio seja gente... Talvez que negro seja gente, que gay seja gente, que mulher seja gente, que judeu seja gente... Saudades do menino Hélio que foi arrastado pelas ruas até a morte por ladrões e não menos saudades de Tim Lopes que morreu no cumprimento do seu dever de nos informar...
Hoje eu acordei com saudade dos que não têm quem por eles saudade sinta. Saudades daqueles que optaram por si e se foram pro mundo em busca de seus sonhos. Romperam com paradigmas e, solitários, se foram pra ganhar a si a despeito de contrariar famílias, amigos, amores... Diferente do filho pródigo, não tem mais pra quem voltar. Por eles eu sinto saudades porque o sentimento de pertencimento é que move o mundo; é o que nos alimenta a alma, mesmo aquela pequena, tímida, mas que se busca sempre do alto das suas dificuldades existenciais. Por elas eu também sinto saudades.
Hoje eu acordei com saudade dos que não têm quem por eles saudade sinta. Saudades do que um dia fomos pela certeza do que amanhã seremos e porque hoje só nos basta respirar. Minha criança livre nos cantos da minha Bom conselho, certamente perambula pelas ruas do Recife, atônitas. Nunca mais fui lhe procurar e sei que ela deve estar me procurando – talvez choramingando entre os brinquedos velhos que nunca tive ou nos braços do papai Noel que nunca encontrou o endereço da nossa casa quando eu mais precisava dele. Saudades do adolescente que se perdeu entre o certo e errado que me disseram pra eu acreditar; saudades do ser maduro que pra sobreviver na selva de pedra foi mais de um... Em cada rua, em cada avenida, em cada escola, em cada apartamento, talvez esteja um deles esperando que lhe busque. Mas o tempo passou. Na ânsia de permanecer o mesmo, tenho-me mudado sempre. Talvez por isto, sinto saudades dos meus “EUS” – estariam eles com Fernando Pessoa? Ou por ser minha alma ainda pequena, será que algo valeu a pena? Será que meus amores foram eternos na duração deles, ou duraram porque não houve duração? Amanhã, quem sabe a sorte, terei em minha casa uma ceia de natal às avessas: eu sentado com meus diversos eus! Entre todos nós, uma saudade certamente irá criar um halo em nossas cabeças para que nunca mais a gente se permita à se-pa-ra-ção... Mesmo que pra isto eu continue fazendo de conta!