Fronteiriça

[Uma outra ópera]

A vida apresenta corredeiras. E latitudes, longitudes e algumas besteiras. Me esfrego pelas paredes tentando acertar o passo, mas a marca de sangue fica ali, toda torta. Há limites, fronteiras por todos os cantos e nunca se pode passar. Faltam os documentos necessários. Falta alguma coisa que não se encontra em papéis, em letras. Algo interno que não sai na foto do passaporte. Sou barrada.

Afundo o pé em algum lamaçal e encontro meu elemento. Areia movediça. Luto para tentar emergir. Enfrento, me esgarço e me sinto viva. Quase morta, mas viva.

Tem dias que não quero os caminhos da fronteira. Que preciso do remanso de algum rio interno, que preciso ouvir o crepitar do fogo pelas aldeias do meu povo, que preciso ouvir os cães acompanhando os violinos pelo deserto. Nenhuma imensidão me basta, exceto a das areias e dos pequenos oásis sonhados. E me sento no meio do nada, olhando o vermelho do fogo, minha gente sorrindo e dançando e é onde consigo olhar as estrelas.

Estrelas. Caminho até elas pulando pelas pedras. Encontro nomes gravados, alguns reconheço, outros quero esquecer. Há clarões e ventos leves, uma total ausência de sons e sinto saudade.

Volto às fronteiras e escolho os caminhos das matas. São mágicos e ali encontro um cobertor tecido com fios de amor. É o único lugar onde posso silenciar sem sentir o aperto de lembranças ou saudade. Ali sou amada e é por isso que sempre estou por lá. Apareço às vezes pela cidade e encontro as pessoas, mas elas sempre me ferem. Nem preciso dos maus presságios para saber, elas irão me ferir, de algum modo.

Volto ao verde e o verde dos olhos derrama suas águas para que floresça a flor.

...

Às vezes a vida me arranha como se fossem farpas, às vezes eu arranho a vida com minhas garras. O que me espera é o inesperado e é fatídico por sê-lo. Ou não.

Corro o perigo de viver. E, às vezes, minha voz cai no seu silêncio. Sofro. Mas já é dia claro e sei que me lê em silêncio. Meu grito ecoa por dentro. Sou-me.

Estou em plano, vôo rasante pela cidade e suas mazelas. Há tanta gente... uma mulher de rosto inexpressivo, um homem atarefado em busca do vil metal. Explode uma guerra. E sou criança. Não me empenho a entender o que não posso mudar, me divirto e te mostro o parque, te chamo ao esquecimento. Acompanho-me.

Enquanto sobrevôo as montanhas, foco a imensidão das flores em sua dolência e já sou flor. Ofereço o néctar a que me beba com avidez. Sou Dama-da-noite com meu perfume de lua cheia e entro pela sua janela fechada, sua porta cerrada, e não consegue fugir de mim até o novo amanhecer. Estou-me.

E já parto para o mundo. Tomo conta dele. E enquanto o mar se mistura com o céu no longínquo horizonte, brindo ao sal. Sal da pele, sal de beber. Suor. Enquanto as taças derramam-se aos sentidos, ardo por dentro e te aponto sua própria ferida. Encontro-me.

Pelo risco, desdobro minhas asas e assim vivo. Eu, águia de mim.

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