Fragmento de uma Sustentável Leveza
...percepções transmutam-me e os sentidos dilatados. Até a matéria dura da pedra parece transluzir em mim a incorpórea suavidade do que se quer, só em vontade, sem nenhuma mácula de pretenso significado. Que nenhuma forma enrijeça o sentido do que é intraduzível. As pedras, os percalços, o interdito, o não dito - Nesse exato momento, tudo escoa entre os dedos do poema imaginado, ainda informe e goteja aqui, onde em carne e ossos, tiro a nata do leite e o pó dos dias invocando o espaço onde nenhuma palavra se inscreve. Que permaneça um corpo nu e lavado de presenças ulteriores honrando o agora, a paz de uma linguagem com textura de pétala, um frêmito delicado, como o sopro leve num ferimento que arde, um olhar banhado em comoção frente as coisas ordinárias e comuns, como meus olhos convertidos em prece ao vislumbrar o cão magro que vacila na avenida entre carros velozes. Que permaneça o que punja até, o coração indiferente dos deuses diante das nossas pequenas mortes - talvez o amor generoso, sem vaidade de predicados, pura substância num silêncio audível onde é quase tátil, a terna intenção.