IMORTALIDADE
o calor em sensações preguiçosas e descabidas
mormaços rebuçavam urubus e arrebóis
os móveis do quartinho esvaziados de cupins
os batentes descascados
as portas rangentes e empenadas
um quartel esfarelado portão adentro
logo ali por perto vagavam aquelas mulheres
no supermercado à espera do próximo feriado
fofocavam em trejeitos, tocavam-se nos braços
sorriam dentes brancos e amarelos, ruges e batons
pediam às dúzias o pãozinho francês
para o café conceder o final de tarde
enquanto alguém fatiava duzentos gramas de mortadela
cento e cinquenta de mussarela e presunto magro
logo um quarteirão abaixo, quase no último exalar do céu
o guarda-noturno pularia lépido o baixo muro
dos fundos da dona-de-casa desamparada
do marido que jogava truco no armazém do Seu Zézinho
o leite da panelinha velha já quase borbulhava...
o cão cafungava o lixo, depois corria pelo quintal
balangando vitorioso entre dentes um papel pardo de embrulho
todo melado da carne do açougue da esquina
umas florzinhas azuis, mínimas (que até hoje não sei o nome)
cobertas da terra vermelha e fina da rua
clamavam por gotas de chuva que naquela tarde não viriam
na geladeira, descansava o manjar com ameixas em calda
- eu preferia com doce-de-coco - à espera da minha ávida boca
(Um trecho de imortalidade impossível de abandonar)