O ZELO DO AMAR E SUA LINGUAGEM

Beleza, Amada, é não precisar esconder nada. Ao contrário, dá gosto desfiar amores e lembranças.

Tal o casulo que o gatinho, um dia, furtou de minha mãe, enquanto ela tricotava. E a sala se tornou uma teia enorme, com aquela aranha preta de quatro patinhas, que enrodilhada, presa em sua própria armadilha, rolava entre brancos fios de linha.

E eu fiquei a rir durante vários minutos. Ri tanto que doía o maxilar. E a mãe, presa do espanto – porque nada acompanhara dos folguedos da infância do gato –, ria comigo só porque eu era o seu filho, o objeto psicológico de seu afeto, de sua possessão maternal.

A cena do momento, à sua alma madura nada dizia, mas a alegria dela provinha da minha, daquela cara sapeca transfigurada pelo inusitado da cena e a explosão ressurgida das sonoras risadas da infância. Explicou-me, logo depois do plástico incidente do gatinho preto, algumas razões hauridas durante o exercício da maternidade de oito filhos.

Reportava-se àquele dia perto dos dois aninhos, quando o ‘tinhoso’ furara o cano d’água, no pequeno corredor coberto de cinzas de carvão mineral. O improvisado chuveiro transfigurava a criança ao observador, como se ela fizesse parte do universo floral do jardim a ser aspergido.

O pequeno batia palmas e emitia gritinhos, enquanto o mano mais novo, espantado, olhava a cena, e engatinhava em direção ao chuveirinho d’água. Balbuciava o enrolado idioma dos bebês, onde tudo é alegria, porque, de outro, só há o choro. Eram o Zico e o Beto, na memória da mãe.

Eram assim, Amada, os laivos brincantes dos portais da infância. Tudo para que saibas que esses repentes estão contidos de há muito no fundo dos esconderijos do ser, lá onde se escondem as raízes psicológicas do jogo infante de viver.

São os guardados dos velhos armários da casa de estância, onde, um dia, as jóias de reis e de imperatrizes foram, também, guardadas. E nas paredes e nos subsolos das senzalas, onde os explorados curavam o sal das charqueadas e tropeavam as esperanças e alforrias.

Este zelo em nada difere da casa de alvenaria de duas peças e uma cozinha de madeira, onde as crianças, nos reiterados invernos de frio e chuvas, aqueciam as mãozinhas sobre o calorzinho dos fogareiros a carvão e o fogão a lenha.

Nessas fases dos anos primaveris, para quem conheceu a felicidade (e ainda lembra dela), a injustiça social e as diferenças não restam ressaltadas, porque as coisas coabitam com os sonhos, submersas no lúdico das canções e dos folguedos.

Mas o que dizer agora, na quadra dos trinta e poucos, em que os sobressaltos dos sentimentos vão se acumulando no coração do homem que ama, e quase sempre, perde-se a aposta lendária dos sapatinhos de Cinderela?

Poder-se-á cantar amorosamente, quando a cabeça já estiver moura pela ação dos invernos?

– Do livro EU MENINO GRANDE, 2006 / 2008.