Para além do visível


Um olhar direto e efusivo.
Dois braços que se movimentavam como um náufrago.
Uma boca aberta numa débil expiração.
Orelhas prolongadas e pontiagudas deixavam revelar sua aparente surdez.
Meio corpo revestido de áspera matéria e a outra metade não me era visível, nada nele se movia além.
Atraída por um fascínio que exalava de suas entranhas, lancei-me embevecida com olhar de doçura e ao mesmo tempo de espanto, ao encontro daquela existência quase irreal.
Passos vagarosos e contidos, olhar fixo e esbugalhados, lá fui eu para contatar talvez a vida ou quem sabe, uma insensível morte.
Parei próxima àquele ser, ví em seu olhar uma dúbia intenção e recuei para não ser atingida.
Impulsionada e ávida para revelar sentimentos naquela inabalável figura, intentei meu primeiro colóquio. Insensível à minha fala nenhum movimento lhe foi acrescentado.
Percebi, então, que para penetrar em seu mundo congelado seria necessário mergulhar em sua outra metade. Foi então que dissimulei um diálogo sem palavras e sem movimentos. Inerte como tal, deixei apenas que minhas emoções ecoassem e, assim, pude contemplar o âmago daquele ente enigmático e vi se descortinar o que não me era visível, um rio de águas doce como o mel correndo suavemente sobre as suas pedras com a brandura de um apaixonado.
Quão agradável foi para mim poder apreciar aquelas intensas sensações que se manifestavam tão ocultamente. Para provocar o aflorar dessas emoções reprimidas continuei ao seu lado amavelmente imóvel e taciturna para não intimidá-lo.
Continuo ainda lá, diante deste ente dual, esperando que suas metades se complementem, instingando-o a entregar-se aos afetos e a abandonar o marasmo do seu vil destino para viver a totalidade de sua existência.
Maria Celene Almeida
Enviado por Maria Celene Almeida em 31/10/2011
Código do texto: T3309470
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