Foto: parte alta da Cachoeira Casca D'Anta.
João e Maria nas aragens de um sonho
Conheci João ainda menina e nunca mais parei de viajar ao seu lado pelo interior mineiro, abraçada nas palavras que eu já conhecia, mesmo antes de aprender a ler. Pois elas mostram o jeito do caipira cangar os bois de carro, tocar o gado pelas estradas, rios e serras encascalhadas. Palavras que descrevem a incansável lida dos cavaleiros que atravessavam o sertão, protegidos do sol por dias nublados ou se molhando nas chuvas de primavera.
A fala de João é calma como o enrolar de um cigarro de palha, gostosa igual comer pão de queijo com café ou pescar no corguinho ao entardecer. Ele sempre soube do meu amor, não precisei falar que lendo seus livros, escalei a Lua, cheguei ao céu para dormir sonhos...
Naquele dia, ele voltou a Minas... Estava vivo... Encantado. Era nosso primeiro encontro assim de perto. Pedi que me acompanhasse numa visita à Serra da Canastra. Assentiu e caminhamos os dois em silêncio, pelo Chapadão afora, tudo estava verde e florido; as sempre-vivas,as canelas-de-ema e até mesmo os lírios. Na concha das mãos, bebemos água fria da nascente do Velho Chico. Margeamos o rio até sua primeira queda, a Cachoeira Casca D'anta.
Ele quem puxou prosa primeiro, excelente companhia, aos poucos se apresentou pra mim como um matuto sonhador, me confidenciou que em Minas sentia-se livre, longe da rotina dura do mundo urbano e fumacento. Eu bebia suas palavras, onde descrevia a vida em retalhos de céu, pedras de serra, pingos de sereno e frutas do cerrado amoitadas no capim rasteiro. Assim, Guimarães Rosa me ensinava que nem sempre se precisa de presença física para se amar alguém. A certa altura do caminho, me olhou e disse:
— Maria... Alguns sentimentos não se perdem na ausência quando se possui afinidade de alma. O comum que temos é o nosso jeito de espiar o mundo aqui do alto da Serra, sentindo o cheiro, a cor e o gosto da vida, nas águas, fauna e flora desse lugar. Daqui do Paredão, vemos o rio com toda sua simplicidade na nascente, esse fio d’água correndo pelo Chapadão, saltando toda manhã em cachoeiras de águas cristalinas. É esse rio que se agiganta para aguar e encher de verde o outro lado do Brasil.
Segurou minha mão e seguimos do jeito calado que tomava conta da paisagem. O tamaduá-bandeira balançava o capim, uma onça pintada espreitava escondida na capoeira. Íamos para onde o sol apontava, o mesmo que na aurora tinge a terra de cores variadas secando o sereno. Esse sol que toda noite repousa nos braços da lua terna e apaixonada, que o protege com um manto escuro pendurando estrelas reluzentes nos portais para iluminar o céu.
—João... Esta Serra abriga muitos sonhos, já alimentou almas de bugres, jagunços e tropeiros. Com essa beleza singela, acalenta a vida de almas simples, criando imagens que os seguem pela vida afora, despejando gotas de saudades nos corações que visitam estas paragens.
As águas cochichavam segredos guardados no fundo da Canastra quando chegamos ao topo da última Serra. Era chegada a hora do adeus... De mãos dadas, ouvíamos a natureza sussurrando o som do universo, sentíamos a presença da Imortalidade nas águas revoltas das cachoeiras, nos campos arados do céu e no vento cigano de minha terra.
Desejei segurar o tempo, eternizar aquele momento. João tinha no olhar algo que o ligava ao sol e às estrelas, parecia desacontecido, virou-se pra ir-s’embora. Estava voltando para casa, indo para longe de mim, mesmo assim ainda permaneceria comigo por muito tempo, mesmo depois que o vento tivesse apagado nossos rastros, na poeira do caminho.
Suavemente, me soltou as mãos... Por um rápido segundo, mirei e vi seu rosto sereno sendo levado pela aragem... João ia, como se fosse parte da neblina, rumando cada vez mais alto, ascendendo aos céus, seguindo para as estrelas.
Era noite, havia luar... Meu coração amanhecia.
Nota: Esse texto é uma homenagem ao meu escritor preferido, João Guimarães Rosa. Ele me ensinou a valorizar as coisas simples e fazer delas coisas grandes, através do modo de ver e enxergar o mundo.
Conheci João ainda menina e nunca mais parei de viajar ao seu lado pelo interior mineiro, abraçada nas palavras que eu já conhecia, mesmo antes de aprender a ler. Pois elas mostram o jeito do caipira cangar os bois de carro, tocar o gado pelas estradas, rios e serras encascalhadas. Palavras que descrevem a incansável lida dos cavaleiros que atravessavam o sertão, protegidos do sol por dias nublados ou se molhando nas chuvas de primavera.
A fala de João é calma como o enrolar de um cigarro de palha, gostosa igual comer pão de queijo com café ou pescar no corguinho ao entardecer. Ele sempre soube do meu amor, não precisei falar que lendo seus livros, escalei a Lua, cheguei ao céu para dormir sonhos...
Naquele dia, ele voltou a Minas... Estava vivo... Encantado. Era nosso primeiro encontro assim de perto. Pedi que me acompanhasse numa visita à Serra da Canastra. Assentiu e caminhamos os dois em silêncio, pelo Chapadão afora, tudo estava verde e florido; as sempre-vivas,as canelas-de-ema e até mesmo os lírios. Na concha das mãos, bebemos água fria da nascente do Velho Chico. Margeamos o rio até sua primeira queda, a Cachoeira Casca D'anta.
Ele quem puxou prosa primeiro, excelente companhia, aos poucos se apresentou pra mim como um matuto sonhador, me confidenciou que em Minas sentia-se livre, longe da rotina dura do mundo urbano e fumacento. Eu bebia suas palavras, onde descrevia a vida em retalhos de céu, pedras de serra, pingos de sereno e frutas do cerrado amoitadas no capim rasteiro. Assim, Guimarães Rosa me ensinava que nem sempre se precisa de presença física para se amar alguém. A certa altura do caminho, me olhou e disse:
— Maria... Alguns sentimentos não se perdem na ausência quando se possui afinidade de alma. O comum que temos é o nosso jeito de espiar o mundo aqui do alto da Serra, sentindo o cheiro, a cor e o gosto da vida, nas águas, fauna e flora desse lugar. Daqui do Paredão, vemos o rio com toda sua simplicidade na nascente, esse fio d’água correndo pelo Chapadão, saltando toda manhã em cachoeiras de águas cristalinas. É esse rio que se agiganta para aguar e encher de verde o outro lado do Brasil.
Segurou minha mão e seguimos do jeito calado que tomava conta da paisagem. O tamaduá-bandeira balançava o capim, uma onça pintada espreitava escondida na capoeira. Íamos para onde o sol apontava, o mesmo que na aurora tinge a terra de cores variadas secando o sereno. Esse sol que toda noite repousa nos braços da lua terna e apaixonada, que o protege com um manto escuro pendurando estrelas reluzentes nos portais para iluminar o céu.
—João... Esta Serra abriga muitos sonhos, já alimentou almas de bugres, jagunços e tropeiros. Com essa beleza singela, acalenta a vida de almas simples, criando imagens que os seguem pela vida afora, despejando gotas de saudades nos corações que visitam estas paragens.
As águas cochichavam segredos guardados no fundo da Canastra quando chegamos ao topo da última Serra. Era chegada a hora do adeus... De mãos dadas, ouvíamos a natureza sussurrando o som do universo, sentíamos a presença da Imortalidade nas águas revoltas das cachoeiras, nos campos arados do céu e no vento cigano de minha terra.
Desejei segurar o tempo, eternizar aquele momento. João tinha no olhar algo que o ligava ao sol e às estrelas, parecia desacontecido, virou-se pra ir-s’embora. Estava voltando para casa, indo para longe de mim, mesmo assim ainda permaneceria comigo por muito tempo, mesmo depois que o vento tivesse apagado nossos rastros, na poeira do caminho.
Suavemente, me soltou as mãos... Por um rápido segundo, mirei e vi seu rosto sereno sendo levado pela aragem... João ia, como se fosse parte da neblina, rumando cada vez mais alto, ascendendo aos céus, seguindo para as estrelas.
Era noite, havia luar... Meu coração amanhecia.
Nota: Esse texto é uma homenagem ao meu escritor preferido, João Guimarães Rosa. Ele me ensinou a valorizar as coisas simples e fazer delas coisas grandes, através do modo de ver e enxergar o mundo.