D E S A B A F O
Busco em minhas lembranças, entre os retalhos do porão, alguns pedaços coloridos que usaria para me aquecer.
Poucos encontro. São quase todos negros, marrons e cinza e têm cheiro de bolor.
Quando nasci, eu fui festa!
Linda, loira, olhos claros!
Menina? Que bom!
Hoje não sou mais festa. Os balões estouraram, as velas foram se apagando e os olhos só são claros
para quem não vê de verdade.
Os anos me marcaram. Fundo! Como essas marcas que se fazem nos dorsos dos bois. Fui como eles, silenciosa na minha dor. Docilmente acompanhei meus donos e lhes fui fiel.
Hoje sinto raiva por não sentir raiva, me condeno, por não saber condenar, me odeio por não aprender a odiar!
Dei alimento aos lobos...e eles me morderam as mãos!
Quem sabe eu não seria mais inteira se houvesse aprendido a errar.
Por essa vida da qual venho, me arrancaram muitos pedaços. Me devoraram tantas emoções...e se saciaram e arrotaram e até vomitaram as partes não digeríveis.
Depois dormiram e sossegaram, enquanto a insônia crescia em mim!
Apesar de tudo, nunca busquei atalhos que facilitassem o caminho.
Se hoje me sinto cansada e todas estas lágrimas me salgam o rosto e esta dor me aperta o peito, deve ser indisposição passageira... amanhã estarei melhor.
Vou abrir a janela e o sol vai inundar o quarto, me aquecerei com certeza.
O cachorro vai latir e os pássaros vão cantar e eu vou me sentir feliz por ainda saber amar!