A Mulher e a Menina

 
Há um passado no meu presente
Um sol bem quente lá no meu quintal
                              Milton Nascimento



 
Em vários momentos das estações da vida procuro aquela que fui num verão de um tempo qualquer, de um lugar especial, na curva desse mesmo tempo. Na parede da memória, os sons daquela voz e daquele lugar já ecoam tímidos, murmurantes, como um acorde vibrando no silêncio da tarde.
Aos poucos ela vem e as imagens ganham o status de sonho, de fotografia guardada no álbum raro da saudade, que não esqueço, mas que sei o lugar delas dentro de mim, como tudo que é bom e raro, nessa vida.
Em mim uma necessidade imensa de me aproximar daquela que dançava na chuva e no milharal. Cantarolo as canções para a dança entre os pingos e as espigas maduras e sinto a umidade da terra nos pés descalços, nas horas fugidias do olhar vigilante da mãe ou das irmãs mais velhas.
A que dançava  na chuva e no milharal tinha os cabelos das bonecas do milho e brincava numa casa na árvore e mal chegava da escola, dava um jeito de escapar para ir até lá, conferir se estava tudo em “ordem”. A ordem do mundo de menina impossível, novidadeira, curiosa... Se havia companhia conversava, se não havia conversava também.
Rodopiava no milharal e se imaginava Dorothy, no meio do redemoinho... Daqui a pouco encontraria o homem de lata, o leão medroso, o espantalho...
Vez ou outra o rodopio, a dança na chuva e no milharal era o pó de pirlimpimpim e lá ia ela em mais uma aventura pelo reino das águas claras, pelo país da gramática e tantos outros lugares encantados!
A que dançava na chuva e no milharal se permitia ser tudo. Bicho, planta, gente, ser de outro mundo, bruxa, fada, princesa, professora, poeira de estrelas.
É a ela, a que dançava na chuva e no milharal que recorro, quando pesa o mundo adulto nos ombros. É ela que me diz que haverá sempre a chuva nas estações e milharais verdejantes no mundo dos sonhos e que sempre vou poder rodopiar por lá.
É só fechar os olhos...
É só abrir um livro...
É só me permitir...



Bola de Meia, Bola de Gude
              Milton Nascimento



Há um menino
Há um moleque
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto balança
Ele vem pra me dar a mão

Há um passado no meu presente
Um sol bem quente lá no meu quintal
Toda vez que a bruxa me assombra
O menino me dá a mão

E me fala de coisas bonitas
Que eu acredito
Que não deixarão de existir
Amizade, palavra, respeito
Caráter, bondade alegria e amor
Pois não posso
Não devo
Não quero
Viver como toda essa gente
Insiste em viver
E não posso aceitar sossegado
Qualquer sacanagem ser coisa normal

Bola de meia, bola de gude
O solidário não quer solidão
Toda vez que a tristeza me alcança
O menino me dá a mão
Há um menino
Há um moleque
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto fraqueja
Ele vem pra me dar a mão


Da Série uma Música, um poema, outro texto.


Aqui letra e música dispensam comentários.Milton Nascimento é poesia viva em forma de canção...Vale a pena ver o vídeo e ouvir a música.

imagens da web



http://www.youtube.com/watch?v=vG1QVZDuP1o