Carta na noite das fadas ou dos mortos
Meu quarto, madrugada de 31 de outubro de 20...
O sonho acabou, literalmente. São quase quatro horas da manhã e, dessa vez, acordei sem susto.
A campainha tocou e a mesma sequência: você gritando ‘deixe-me entrar, quero ser feliz pelo resto de minha vida, nem que seja por dois minutos’; de novo, achei meio esquisito pensar na deselegância da falta de porteiro eletrônico; imaginei um dedo, apenas, pressionando um botão – como, naquela antiga série de TV, o almirante lançava o míssil do submarino nuclear, abrindo caminho entre a água imensa e destruindo obstáculos - aquilo, sim, parecia mágica!... Então, feito improvável Rapunzel, deslizei até a sacada e joguei a chave.
Ano após ano, o sonho vem em capítulos continuados; a cada ciclo não se encerram (como deveriam): crescem para além do estrilo da campainha, dos limites do quarto, dos ninhos de morcegos e passarinhos nos beirais do telhado; entranham-se pelo prédio, por paredes, escadas e telhas, qual erva de feiticeira.
Da primeira vez, despertei antes de ouvir seu apelo, mas algo me dizia que era você – pela estridência e pelo ritmo contido do sininho, só podia ser você! As nuvens que embaçavam meu sono também sabiam isso, e desde então, essa certeza...
No ano seguinte me acostumei à falta do botão: facilitar o acesso era responsabilidade minha, é certo, e as portas e janelas venezianas do meu coração estavam sempre abertas. Mas uma vez os postigos ficaram fechados - creio que foi quando você desistiu e voltou do terceiro lance da escada. Lembro-me dos seus passos pesados, ligeiros, quase pulos... Acordei com esse barulho e chorando.
Já houve a noite de pesadelo, bruma em que você chegou e esqueceu a que veio. No sonho, imaginei que tipo de perdão você pediria, e que tipo de consolo eu permitiria a nós dois.
O som que me acordou, é claro, era irreal; os sons que me acordam são quase sempre irreais. Daqui a pouquinho, o barulho das aves dirá do dia nascendo e do meu resto de sono cumprido, correto.
Haverá uma noite em que (sonhando) antes de dormir desligarei a chave geral do quadro elétrico – aí, adeus campainha. Se magicamente eu estivesse em seu lugar - e, qual um ser mágico, pudesse escolher – eu chegaria antes.
Esperar que o amor desperte no outro é só mais um sonho. Ao final, acordamos, sempre.