CONSIDERAÇÕES EXTEMPORÂNEAS II
(Qualquer coisa sobre quase tudo...)
 
 
I
 
Não tenho mais vontade de querer ter vontade
À vontade fiquem todos com suas vontades
Se me arrancaram impiedosamente a vontade
Eu tenho somente a metade do empenho
E me embrenho no silêncio das irrealidades
 
Não me peçam agora algum lirismo
(Se assim quiserem, vão ler Camões)
Não me peçam que lhes faça um poema
Nem poesia mais me peçam, que não tenho
Engoli por muito este engodo da catarse
De ser maravilhado por uma lírica beleza
Enquanto as palavras me saíam impunes
Desperdiçando todos os meus silêncios
Arrancando pedaços do que sempre fui
E o que fui era este disfarce tão loquaz
E bem capaz de me fazer crer em tudo mais
Até a poesia ir-se assim silenciosamente
Sem aviso nem despedida, injustamente
Deixando as dúvidas e os dilemas do vazio
De um vazio que dói bem mais por dentro
E essa escuridão que é só de não ver mais
Um pouco além do cais para outros horizontes
Esse nunca mais saber para onde ir...
 
 
II
 
E fui longe demais com essa tristeza
Ela me levou muito além de onde podia ir
E de tanto me açoitar tornou-se uma doença
Cuja cura somente eu posso encontrar e ter
Tristeza posta no oco dos dias desafortunados
E estava ali o tempo todo a me perseguir
Como bicho faminto saciando-se de mim
Estava ali a me consumir sem eu ver
Que a tristeza era um monstro que eu criava
E que me matava como monstro que eu era
 
Não esperem que eu espere compaixão por mim
Guardem sua piedade para seu próprio deleite
E não me queiram enfeite de suas alegrias pequenas
Tão pequenas que se perdem no pó dos dias
Num sem tempo em que jazem os esquecimentos
 
Que podemos ser sem a vontade?
 
Sei que o ar sufoca a minha volta
As horas pesam no peso dos dias
Cada olhar angustia mesmo sem ver
E da janela que olho há um mundo
Sempre perdido a se esconder de mim
A vida chega a arder em carne viva
E a alma teme que a carne não sobreviva
E se prende à dor doída como se isto fosse vida...
 
 
III
 
Eu escrevia e disfarçava o medo disso tudo
Disfarçava o asco e o tédio, a indiferença
Um verso que vinha sempre para não dizer
Uma palavra que sempre fazia a maior falta
E de poesia era tão comum que me alienasse
Ainda que sempre me faltasse certa dose de vida
Real e não imaginária, criativa e não criada
Desfeita de qualquer fácil e fútil ilusão
E deu de doer não poder mais disfarçar
Que quanto mais vivia mais se calava
O clamor dos tolos sonhos e toda a poesia
Que me inventava de ser este um outro
Num outro que não este que não quis ser
Ou qualquer um que eu pudesse aprender
Marcos Lizardo
Enviado por Marcos Lizardo em 12/08/2011
Reeditado em 19/05/2021
Código do texto: T3155902
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