Favo e fonte

Só a poesia consegue dizer o indizível,

De repente ocorre-me.

Só a poesia abole as fronteiras não só da técnica, mas também do espaço e do tempo.

Os anos e desenganos que vivemos juntos, e agora

São, como um vitral, só cores.

Lembro-me, como se fosse ontem

(pois também tenho o dom de que você tanto se gaba

de guardar cenas e momentos)

do primeiro dia deste terceiro ano, em que transpus os teus umbrais

início de infindáveis encontros que só terminam ao cantar dos galos

da manhã, ao pé da serra.

Galos que não me acusam de traição alguma, mas antes me trazem de repente

A sugestão de ipês floridos em cerrados secos que continua a perseguir-nos com sua teimosa ternura,

Mesmo quando já perdemos de vista a luminosidade do horizonte azul,

A cuja luz as coisas se modificam, as escalas de valores se alteram, os eixos se deslocam a uma palavra, um choro, um riso de criança.

A tua ternura que tantos pensam conhecer, é o âmago da tua alma,

A explodir às vezes, num estilo quase barroco

Em que te tornas em prosa a mais refulgente das poetas,

Quando não preferes a emoção recolhida na tranqüilidade

E essa outra espécie de poesia, o embate corporal amoroso.

Escreveste um dia, a propósito de um texto meu, que eu fora teu homem;

Mas a última vez, me senti como fosse seu marido peregrino e guerreiro.

Impossível não pensar numa espécie de conto de fadas estando a seu lado.

Eu,

Favo e fonte,

Tirado do seu sono e do seu sonho.

Eu, a alma de sua alma.

Por que passe de mágica nos encontramos como em um sonho?