Antropofagia
As mãos grandes
grudaram na vitrina
unhas fungentas
depósito de imundices
dedos finos
sujos
olho vidrado
barba empapada
cabelo comprido
rosto envelhecido
o homem
olha para aqueles olhos
do outro lado do vidro
e não os reconhece
perdeu-se no tempo
que se esvaiu
sem que ele soubesse
ou percebesse
parece que foi ontem,
saiu de casa menino
menos de doze anos
muitos irmãos
mãe prostituída
pai marginal
e assim tornou-se
também marginal
poucas e boas passou nas ruas
gritavam
menino
menino de rua
ele dormia com um olho apenas
cansou de apanhar
ser abusado
ser desprezado
ignorado
esqueceu-se que existia
ou nunca existiu
a fome fê-lo esquecer do tempo
e o tempo tornou-se sobreviver ao outro dia
sol e lua
noite e dia
passa
passa tempo passante
pro menino
que nunca se tornou homem
ao menos não percebeu
de menino
a mendigo
percebe agora
na sua face
refletida na vitrine
face que não reconhece
face de um velho
e acaso..
pensou
menino de rua envelhece?
sorriu
pela ironia de sua desgraça
era ele mesmo
e ele mesmo não se reconheceu