UMBUZEIRO
Umbuzeiro.
Guel Brasil
As crendices populares por aqui chegam ao cúmulo do absurdo; basta dizer que quando nasci, a parteira que me tirou das entranhas de minha mãe, foi minha avó, a finada Ponciana; tratou de recomendar que quando caísse o meu umbigo fosse enterrado dentro de algum curral, dizendo ela que eu seria dono de muitas cabeças de gado; que não enterrasse no cemitério senão eu morreria cedo, coisas desse gênero. Não fiquei sabendo onde foi enterrado o meu umbigo; mas de uma coisa tenho certeza, nem morri cedo e nem me tornei latifundiário pra ser dono de muitas cabeças de gado.
Eu tinha pouco mais de cinco anos quando vovó Ponciana faleceu aos noventa e dois anos de idade. Todos nós choramos a sua morte; nesse tempo nós estávamos morando na Faz. Baixa Alegre, que mais tarde passaria a ser propriedade de meu pai, quando da morte de vovô Militão de Jesus e Santos. Papai tinha outros irmãos, mas nenhum deles quis ficar ali naquele fim de mundo, e se arribaram pra outras bandas buscando mudança de vida. E nós ficamos ali, cuidando da propriedade e do pouco que nela havia. Terra tinha bastante, a sumir de vista; toda a área cercada com Gravatá, e nas duas extremidades porteira e mata-burro. Os animais que estavam dentro não saiam os de fora não entravam. Meu pai, Tiburtino não sei de que, era analfabeto por parte de pai e de mãe, não era registrado, não tinha sobrenome, e era rude como um moirão de cancela. Era coitero, e pra não morrer por jura de má querência, viu-se obrigado a ficar escondido na gruta do socó por mais de dois anos, até que a Volante comandada pelo coronel Florêncio, acabou com o bando de Tiburcio no paredão do açude da Fazenda Roncador. Da volante morrerão quinze; do bando de Tiburcio foram vinte, contados pelas cabeças cortadas e colocadas na beira da estrada boiadeira que ia da fazenda Roncador, até a divisa com as terras da Fazenda Baixa Alegre.
Todos nós pensamos que pai tinha morrido, mas a cabeça dele não estava entre as cabeças dos jagunços mortos, e que foram colocadas na beira da estrada.
Mesmo porque as desavenças de meu pai não era com a volante do coronel Florêncio que por muitas vezes já havia defendido nossa família dos jagunços, que acusavam meu pai de coitero.
E o pior de tudo isso é que a cabeça de Tiburcio também não estava entre as cabeças dos jagunços do seu bando, e isto levava a crer que Tiburcio tinha escapado da emboscada, e ninguém sabia do seu paradeiro. Mas as noticias por aqui chegam sempre a galope sejam elas boas, ou ruins; dessa vez não foi diferente; o mascate Rudabibe que fazia esse trecho todo começo de ano, espalhou a noticia de ter visto Tiburcio a caminho das serras do Mocororô, a galope de cavalo e sozinho.
Isto se deu no fim dos anos trinta, bem no comecinho dos anos quarenta, e nessa época se matava pelo gosto de ver a queda, ou para experimentar armas vindas de outras bandas, que sempre caiam nas mãos dos coronéis com patentes compradas, ou nas mãos dos jagunços, que a troco de armas e munições, matavam as desavenças dos que não tinham coragem de matar. Só minha mãe, dona Durvalina que Deus a tenha, é que sabia onde meu pai estava escondido; e a pedido do Coronel Florêncio foram buscá-lo; minha mãe, meu irmão mais velho Tiago, e um capanga do coronel por nome Garrafão.
Pensamos que pai tivesse ali por perto, nos limites de nossas terras; pai estava escondido nas grotas da cascalheira, já dentro das terras de João Evangelista. Saíram bem cedinho naquele dia, e só retornaram com o sol deixando seus últimos raios nas serras do Rio Doce. Quando todos chegaram ao terreiro da casa, vi que o coronel Florêncio ficou muito contente de ver meu pai, e os dois até se abraçaram; ficaram sentados ali debaixo da paiada por um bom tempo, enquanto mãe preparava o que comer pra toda aquela gentarada. Só da tropa do coronel Florêncio eram dezoito; estavam todos alojados na casa de farinha, e o coronel tinha combinado com meu pai de sepultar seus quinze homens perdidos no entrevero, ali no nosso cemitério. Fizeram isso logo que o dia começou a clarear; os homens cavaram uma grande sepultura, jogaram os quinze mortos ali dentro uns por cima dos outros vestidos com as roupas que estavam, deram um bocado de tiro pra cima e aterraram o buraco. Até os dias de hoje guardo aquela cena no meu juízo.
Depois desse entrevero Tiburcio durou pouco tempo, e foi encontrado morto numa restinga dentro de suas próprias terras; deixou a mulher e dois filhos cuidando da fazenda Mocororô, e nenhum deles quis saber de vingar a morte do pai. Correu-se a noticia que Tiburcio tinha se suicidado a pedido da própria família, que já não estavam suportando tantas mortes entre eles. O bando se desfez, mas muitos dos jagunços de Tiburcio se juntaram com o bando de Curisco. As terras da fazenda Baixa Alegre, tinham uma divisa natural com as terras da fazenda Mocororô; as barrancas do Rio Doce que só via água de fartura quando chovia no sertão, era uma linha de divisa natural. Rio Doce era um desses caprichos da natureza; não tinha dono, e todos os moradores daquela região tinham o direito de utilizar a sua água quando cheio, e quando seco cada um que cuidasse de abrir e cercar sua própria cacimba para preservar a água limpa. Eu vi morrer meus avós, meus pais, muitos dos meus parentes arredaram pé daqui desse fim de mundo, mas eu não quis saber de sair. Meu irmão Thiago só Deus sabe por onde anda, nunca mandou noticia; às vezes penso de já ter morrido. Eu sou Levi de Jesus e Santos, o único sobrevivente de muitas desventuras aqui vividas. Me ajuntei com Rasalina, e com ela vivo já há mais de quarenta anos; dos quatro filhos que tivemos só restam dois; os outros morreram no parto.
Eu não sei ao certo quantos anos tenho, mas devo estar beirando os oitenta; muitos dos que nasceram junto comigo já morreram. Entra ano sai ano, chova ou faça sol, o Umbuzeiro no vão da paiada continua de pé; o único que resistiu a tudo durante todos esses anos. Com certeza vai estar aqui quando eu der meu ultimo suspiro.