Ismália - prosa poética

Quando ismália enlouqueceu,

pôs-se na torre a sonhar...

Viu uma lua no céu,

viu uma lua no mar.

(Alphonsus de Guimaraens)

ISMÁLIA

De todas as moças, ela era a mais bela. Pele luzidia, os cabelos negros. O rosto tão puro, as mãos muito alvas, cabelo às espáduas, o olhar sereno. Trancaram-na à torre, de louca a chamaram. De cruzes cercaram, e rezas também. A pobre menina, tão pobre e tão linda, já presa no claustro, ninguém que a defenda, olhava p’ra lua, perdida e atenta. Era tudo um sonho, grande sofrimento, quem em meio a tormentos, sentia prazer. Prazer repentino, de súbito vindo, tremia-lhe o corpo e punha-lhe a dizer:

"Tão lindas são as copas das árvores que florescem no mar! São lares dos mais belos pássaros e das mais peçonhentas víboras. Não me canso de olhá-las, de admirá-las. Queria tocá-las, mesmo que por um leve segundo, e assim saber de quanto tempo preciso para nascer. Eu estou no útero, estou sendo gestada. Mais dia, menos dia, nascerei, e serei tão bela quanto as copas das árvores do mar. E em mim habitarão bichos de toda a natureza, porque eu sendo filha, já sinto como é ser mãe de tudo, eu me preparo para dar minha força a tudo, eu borbulho."

Não era pra menos, acharem-na louca. Não compreendiam sua sede de sal. E por mais que fizessem, a alimentavam: levavam-na à marcha da vida fatal. Os banhos gelados, os muitos castigos, o fogo e o crivo em marcar-lhe a cinzel. A menina tola, de braços pendidos achara uma fuga no alto do céu. Era a grande lua, prateada a subir, refletindo a fuga, que estava por vir.

Astro cristalino chagado de cinzas, iluminai-me. Lançai vossos raios singelos, translúcidos, sobre minha alma, sobre meu espírito. Fazei-me tornar-me mais forte que eu mesma e deixai-me compreender-vos em toda a tua plenitude. Sinto-ta prata, sinto-to mármore, e na fulva claridão do teu resplandecimento, banho-me e sinto-me: mais viva, mais viva, quase uma coisa que não quer cessar: sou pulsação.

A linda menina, cansada da vida, d’olhos à janela, distante pensar, mesmo não querendo, não pode deixar, de ver duas luas, em brilho plangente, ambas à sua frente, no céu e no mar. Então que brotou, grande indecisão, ela queria tê-las, pra si possuí-las, e à noite cantava, p’ra si e as amigas:

"Daqui do meu útero de pedras, percebi dois bens valiosos antes nunca mirados. Eu era tola, cabeça às nuvens. Só fitava o mar quando não havia a esplendorosa lua no céu. Mal sabia eu que eram duas, que eram gêmeas. Mas são tão distantes ambos os astros e não há passagem senão pelas copas das árvores do mar. Seguirei então, passando de uma a uma as copas cintilantes das árvores do mar. E no fim da caminhada, alcançarei uma lua. Ao tocá-la, nascerei e ascenderei ao céu com asas de anjo. Terei-as para mim, terei-as. Eu não as segurarei, não as habitarei, eu as serei. As duas em uma serão uma só, serão eu a brilhar toda a minha dor e piedade por sobre a terra. Todos me sentirão, me admirarão e haverão aqueles que se banharão em mim, que dependerão de mim: serão meus filhos de ventre avulto."

E a menina-anjo, ruflou as asinhas, em sua jornada, que dores não tinha, ou mesmo segredos, pra quem se adivinha, que a morte não era, o seu grande medo, pois se houveram beijos entre ela e o mar não nos admitiu os presenciar. Mas certo que houveram, que o mar não perdoa, e não abandona aqueles que o buscam. O gelo e o fogo já a consumiam. Banhada em luar, sua alma ardia. Ardia de sal, ardia de céu. Agora no fundo, seu corpo jazia, enquanto que a alma, luzente subia.

23 de janeiro de 2010

Hylo Leal
Enviado por Hylo Leal em 22/07/2011
Reeditado em 29/07/2011
Código do texto: T3112088
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