Da série "CONVERSAS DE ESCRIVANINHA"
9:
[Disparei.
Quando reler o que escrevi pensarei sobre o que pensei.
Por ora, sigo o ímpeto.]
O que fica de tudo?
Dos pássaros feridos (que somos),
dos amores bem (ou mal) cantados,
dos amigos bons que usaram de traição,
do poeta no bar a imaginar delírios,
do amor nos braços errados,
das dores gerando revoltas,
dos olhos cegos para a verdade enquanto a vontade preenche-se com as ilusões que quer,
da efemeridade do tempo, das palavras, do poema, da saúde a abandonar a casa,
da (in)satisfação dos tragos,
do beijo de fel, tão amargo quanto desejado,
do abraço amigo que se rejeitou,
da oportunidade perdida em demonstrar afeto,
do verso que se esqueceu,
dos matizes tão borrados, ora indistinguíveis,
na mentira tão facilmente engolida,
dos bichos que viram bichos e que viram homens e que viram e se reviram, metamorfoses espúrias,
da luxúria coberta de lágimas,
das lágrimas cobertas de risos,
dos risos como disfarces,
do avesso do direito,
do ponto de mira,
da desconfiança,
da soberba que de tudo se sabe,
da injustiça que tudo nega,
da inclinação da água no telhado,
da floreira de gerânios, esquecida, sem regas,
dos girassóis de Thiago, que não se abriram,
da turmalina negra de proteção,
das águas (marinhas) que purificam pés,
dos acertos juramentados que se tornam erros,
do livro (não) lido,
do corte (proposital) na tela da pintura predileta,
das cartas ruins num jogo fácil,
da aposta em pessoas torpes e ascosas,
dos dias que se arrastam cobertos de luz tanta que cega,
dos dias escuros mas sábios na quietude,
do que parecia abrir um caminho mas que induziu a erro,
da punhalada desferida pelo desamigo,
do manto estendido por sobre mentiras mas que não impede que o mau cheiro se alastre,
do chá de menta e artemísia que perdeu suas propriedades,
de tudo sobre o que eu ainda poderia dizer mas que ocultarei?
O que fica?
Um pouco de cada tudo.
Deito-me sobre as palavras de Drummond e seus resíduos:
"e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato."