FLOR DA INVERNIA

E te digo, porque não acho que é traição: a tua ausência me propõe o poema e a imagem. A musa é mais do que convivência, é o tal de encantamento, que nunca se sabe quanto tempo dura. E convivência é tempo marcado pelas intempéries. Na real, estou aqui, no frio, algum vinho dolente a me manchar as papilas gustativas e tu és a mais linda musa que me encanta os olhos, me alumbra, numa imagem que vive em mim há alguns pares de anos. O real é o que nos faz tristes. A poesia nasce para sobrepujar a tristeza, o que nos doi na cabeça, no peito, no corpo, na parte que ama como um bichinho. Realmente, eu não sei falar como os outros, talvez por isso me vejam como poeta. Estás em mim em tudo, amada, mesmo que nem saibas. Será que perdeste a capacidade de te imaginares Musa? E que inspiras em mim o poema, que nasce como flor da invernia. E recrio (que já estava em mim) o poema inspirado em tua ausência:

ANTROPOFAGIA

Ao se falar em vinho,

a cepa vinífera

tem um buquê peculiar.

Viaja nas narinas:

luxúria e fogo,

perfume de mulher.

E se alteia o sangue,

estandarte rubro do desejo.

Maduro,

estalando os lábios,

sorvendo a flor da invernia,

numa manhã triste de junho,

quando o corpo cospe

a sua inquietude.

Quando o corpo cospe a sua inquietude... Sim, é por isso que eu te sinto aqui, musa a respirar dentro de mim, ofegante, depois do amor. Perdão, a ausência material e o vinho me fazem bem. Excito-me. E tu não ficas excitada? Gostaria de beijar-te a parte que em ti não pensa. E estás em mim como nunca estiveste, numa opressão que esconde o falus. Bom que a madrugada já não está tão fria... Fizeste da minha manhã o espelho das alegrias. Espero que também, ao menos por algum tempo, tenhas dado um momentâneo adeus às tristezas. Acho que descubro a luxúria que tu mantinhas guardada como um troféu escondido e te imagino minha, somente minha. Gostarias de fazer amor comigo? E é pecado o que cometo agora, à ausência dos medos e do gume das palavras? Essa é a linguagem em que me vejo e encontro o norte. O poema é a minha cópula de ausências. No abraço que nasce assim, no mutismo dolorido do pássaro que fecha suas asas, após cumprir a travessia migratória. Exausto, porém à espera do novo dia. A utopia é o real daqueles que sabem ser o viver um tecido sem vida capaz de alimentar o sonho. O que fazer? Sou um condenado, esta é a minha linguagem. E respira muito além de mim...

– Do livro ALMA DE PERDIÇÃO, 2010/11.

http://www.recantodasletras.com.br/prosapoetica/3059378