Acervo de Felicidade
                         Por Andrea Cristina Lopes
 

               É mesmo a felicidade algo engraçado. Surpreende-nos em determinados momentos em que não imaginamos nos submetermos e, ainda assim, nem sempre dura por um tanto tempo quanto gostaríamos.

               Hoje, olho com atenção para todas essas pessoas que vão e voltam; transitam displicentes por esses corredores enormes e inacabáveis do shopping, nesse final de dia. Um final frio de dia, que lento, caminha para o anoitecer.

               Há uma dezena, pelo menos, de transeuntes que se acomodaram meio que dormentes nas bancadas que dá para o teatro de bonecos. Estranho, pois hoje é terça feira e só há espetáculo previsto para o sábado.

               Permanecem ali sonolentos, recolhidos, introspéctos a esperarem, não imagino pelo quê. Seus pensamentos vagando, a pairar sozinhos. São ausentes de tudo à sua volta. Sabe-se lá, assim como eu, onde gostariam de estar.

               Vejo-os em seus incessantes passos, esses outros que caminham ao meu encontro. Tenho a nítida impressão que também, não vivem, Estão zumbificados. Apenas passam por entre os dias e anestesiados, seguem. Sem tempo algum para suas coisas particulares, dividem-se apenas entre trabalho e trânsito.

               Quase sem permanência em suas casas e seus entes. São passageiros em suas próprias vidas. Entram e saem dela sem muita ou nenhuma manifestação de gozo. Já não há espaço em seus dias, para se darem ou para que se recebam mutuamente.

               Não me é possível imaginar que tipo de rotina se esconde sob os óculos daquele que ora observo, de terno escuro, alto, passos firmes, elegante. Apenas o tom de pele empalidecida o denuncia quanto à falta de sol. Caminha. Passos cronometrados em minha direção e, no entanto, não me vê.

               Os prédios dessa cidade grande, bela e limpa, estão tão juntos, que tornam tudo muito mais frio. A luz quase nunca tem vez nesses vãos entre os edifícios. Alguns deles chegaram mesmo a ganhar uma tonalidade cinzenta pelo limo que se acumula pela falta de sol direto. Falta luz. Não só nas paredes, mas também nas construções enfileiradas até onde o topo da rua recomeça a descer, onde o sol se deita bem pelo final da tarde.

               Essas pessoas que me transpassam nessa minha igual condição, são apenas rostos que insólitos avançam. Rostos sem vida, sem história, sem futuro conhecido, sem presente que se saiba. Passam e não veem nada. Que verdades estarão segredadas dentro de cada uma dessas faces, desses olhares fixos, desse ir e vir sem promessas? Sem talvez conhecerem a esperança no dia de sol de um provável amanhã, que pode ou não se achegar.

               Esse frio me congela os ossos. Faz com que doam e ainda carrega em si, uma ponta de saudosa lembrança. A lembrança de um dia de calor. De um dia de muito sol. Sol a pino. Por volta do meio dia, quando o relógio solar não deixava dúvida alguma. Era um dia azul. Um azul quase agonizante.

               Tínhamos fome. Era tarde. Perdemos a noção completa das horas. Nosso tempo e espaço resumiram-se em apenas nós dois. Decidimo-nos que iríamos até o shopping. Por lá procuraríamos algum lugar aprazível para comermos algo. Não fazíamos nenhuma questão de como fosse esse lugar, ou melhor, dizendo, esse não lugar. O que importava mesmo era o estar, o estarmos. E estávamos.

               Tudo se mostrava tão perfeito que ríamos até mesmo a toa. Ríamos de tudo. Tudo nos era motivo para o riso. E quando parávamos e nos olhávamos, ríamos novamente. Dois adolescentes fora do tempo, fora do espaço, fora do acreditável.
Perguntamos para uma moça que estava parada ali no ponto de ônibus, se ela sabia o qual deveríamos tomar; o que nos levaria ao nosso destino. Ela, muito gentil, nos informou que seria o "duzentos e oito".

               Entramos. Pagamos o passe e ficamos de pé. Ele segurava no suporte superior. Eu, não tão alta assim, quase tinha que me pendurar para manter-me firme e não pender. Se bem que se eu pendesse para o lado dele, seu corpo grande me ampararia e o toque dos nossos braços, um no outro era uma espécie de dança. Uma carinhosa dança. Uma demonstração de nosso grande afeto. E nesse estágio ao menor toque, nossa paixão acendia.

               O ônibus foi seguindo pela avenida. Era larga e bem arborizada. E isso fazia com que ao passarmos sob as árvores mais frondosas, o calor que era muito, se refrescasse. Era nesse momento que ao respiramos, sentíamos um pouco mais de umidade. Umidade que se resguardava na sombra. E estávamos em pleno verão.

               Aos poucos, fomos nos dando conta de que nos afastávamos do centro. Ao que ele perguntou para a cobradora se demoraria até chegarmos ao shopping. Ela riu. Respondeu que lotação era essa mesma, mas não a direção. Estávamos indo na direção oposta à que queríamos.

               Mal conseguíamos manter o equilíbrio. Fomos acometidos de dores abdominais, tanto era nosso riso. Farto. Espontâneo. Contínuo e sem motivos, aparentes. Riamos simplesmente pela vontade de rir. Ríamos pela vida e como manifestação da felicidade que sentíamos. Ríamos, simplesmente pela alegria de desfrutarmos a companhia um do outro. Finalmente, depois de esperarmos um pouco, conseguimos tomar a condução correta. O destino tão sofrido, enfim nos chegava.

               A fome já era intensa. Fizemos nossa opção e nos servimos em um restaurante muito agradável e claro, ali no primeiro piso mesmo e ao lado de uma galeria que dava para lojas de roupas e livrarias.. Nelas, transitavam pessoas com aspecto alegre e jovem. E em suas faces exuberantes, iam e vinham, sem compromissos nenhum com o tempo que se expandia.

               O calor continuava muito. Conversávamos descontraidamente sobre assuntos vários. Vez ou outra nossos olhares se tocavam e se riam. No entanto, nesse momento nossas crises de risos não se estendiam nos deixaram, enfim.

               Falávamos de coisas simples e corriqueiras do dia a dia, como por exemplo, em como deixar o quiabo mais saboroso, e sequinho se for usado um pouquinho de limão ao refogá-lo. Falamos sobre o arroz branco com pequi, peixes e outros assuntos igualmente descompromissados.

               Em um dado momento ele cortou delicadamente um pedaço da carne com que se servira um tempo antes. Espetou-a com o garfo e a conduziu na direção da minha boca para que eu saboreasse. Apreciei tanto seu gesto. Seu carinho. O cuidado e delicadeza que tinha para comigo faziam com que eu me sentisse totalmente protegida ao lado dele. Vez ou outra ele me adentrava com seu o olhar. Era quando todo o azul com que ele estava envolto, também me sorria.

               _ Experiente amor! Está uma delícia essa carne! Disse olhando-me nos olhos. Os mesmos olhos de sempre, antigos, claros, densos e amarradiços..

               Seus olhos azuis me invadiam. Desnudavam-me sem nenhuma dificuldade. Era como se eu tivesse que fugir para que não me tragassem pra si, porém, quanto mais tentasse fugir, muito mais perto eu me fazia. Apenas sorri e provei. Sem, no entanto, sair de dentro da sua cor, sem desviar-me da porta umedecida que sem previsão nenhuma de tempo, conduzia-me para dentro. Lugar de onde jamais eu quereria sair.

               Tudo que chegava até mim que tivesse vindo pelas mãos dele tinha sabor especial. Com ele e por ele eu era eu sentia-me especial, única, ninfa divina e carnal ao mesmo tempo. Fada azul. Uma fada que trazia em si os melhores sonhos azuis. Sonhos que desejei compartilhar apenas com ele.

               Torno a mergulhar mais uma vez em seus olhos. Eles eram como um dia de sol em baía clara e cristalina.
Lembranças eternas guardadas a sete chaves. São como frutos doces que ora se/me achegam. Memórias que me permitem a existência, a prudência e certeza do novo dia. É um acervo que cerro num baú dourado, e escondo a chave. Para que a qualquer tempo me aqueçam quando meus ossos estiverem quase quebradiços pelo gelo a endurecer-me nesse inverno tão rigoroso.

               Guardo essas lembranças com todo cuidado e esmero que possa ter em minhas mãos. Oh senhor, e quão pequeno é esse meu acervo!

               Talvez seja comum pensar em algo quente quando se está à mercê desse frio que a que ora me exponho. Como saber? Pelo menos tenho comigo uma certeza: depois do inverno o que vem é a primavera. Sempre é. E, é essa a ordem natural do tempo. Das estações. Talvez eu ainda esteja lúcida o suficiente para saber isso, que estação vem antes ou depois da outra. Talvez eu ainda me encontre lúcida na próxima estação. E saiba que nenhuma delas se equivale à outra. Cada qual com seus encantos. Apenas o inverno com seu rigor é que me é tão difícil. Preciso voar para onde o sol não se esquive. Talvez eu voe, ainda antes do próximo início de estação.

               Proponho-me aproveitar ao máximo esse tempo até lá, tempo em que talvez eu vá para o sol, como pássaros que fogem quando chega o frio. Talvez eu apenas me afugente sob os cobertores de minhas invenções. E talvez ainda, vez ou outra eu refaça esse meu pequeno acervo, escrevendo e me eternizando nessas pequenas histórias. Preciso concentrar mais algum tempo ainda no que me resta, nessa vida, nesse pequeno arquivo, meu acervo particular daquilo que chamam felicidade. E que eu tão particularmente e de um modo todo meu, conheço apenas por saudade.

               Aos poucos me desperto desse transe e me percebo aqui cabisbaixa nessa bancada que dá para o teatro de bonecos. Assim como os demais, imagino ludicamente meu pensamento se esvaindo da minha mente e sobrevoando os corredores frios. São como névoas coloridas com formas fantasmagóricas que chegam e se vão, em cores flutuantes.

               Hoje ainda é terça-feira e só haverá espetáculo no sábado. Mas que importa? Meus olhos se acostumaram à sensação e doravante eles também olham e, no entanto, também já não veem mais nada.




***imagens google***




AndreaCristina Lopes
Enviado por AndreaCristina Lopes em 13/06/2011
Reeditado em 15/06/2011
Código do texto: T3032710
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