Absorto Numa Prima
Chegava à madrugada com a brisa gélida. De súbito cheguei, abri o portão, as mãos tremendo de frio. Vi o corredor escuro, o mesmo que me traz muitas lembranças boas da minha adolescência. Aquelas lembranças de traquinagens de bocas e corpos grudados, diálogos longos entre brigas e comemorações de alegrias efêmeras. Do pé da escadaria vi uma luz bruxuleante no vértice de onde não se ouvia som algum. O pensamento voou para o reino de Jade ou seria o reino de Afrodite? Talvez fosse o reino da donzela que...
Dentro da alcova com um pente preto, ela penteava os longos cabelos castanhos lisos, fazendo charme de frente para o espelho. Sei disso, porque bati no vidro da janela e, como estava entreaberta, com um pouco de força, abriu-se de vez, onde pela fenda a vi. Ela me olhou com um meio-sorriso, sem graça por sinal, de quem é pega de supetão e me fitou com olhinhos de te quero muito, isto no silêncio das palavras indizíveis dos nossos pensamentos e o tempo se congelou.
Ela se aproximou da janela, com as mãozinhas lívidas segurou a grade fria; eu a olhava com desejos nos olhos e o meu anelo era recíproco, um arcano familiar. Olhos nos olhos... olhos na boca; olhos nos olhos... olhos na boca... Um universo correndo entre nós; o coração acelerado e a respiração sôfrega, a maldita grade não nos deixou encostar lábios com lábios e nem língua com língua.
Entre a distância daqueles olhares, do cândido momento de desejo e arcano realizo meus sonhos, absorto no pregresso como se tudo ainda existisse neste mórbido presente.