Metamorfose

O Bicho da Seda

Era uma vez...

... na floresta encantada das paixões, uma lagarta que, como toda lagarta, era por todos repugnada.

Sua aparência era horrível.

Seu cheiro repulsivo.

Seus pêlos causavam ardor.

Tudo contribuía para que ela fosse perseguida por todos.

Entretanto, ela tinha um coração imenso.

Ela amava a todos, e, mesmo quando para se defender, seus pêlos queimavam, ela, triste, chorava arrependida por aquela maldade que cometera.

E assim ela vivia.

Ninguém dela se apiedava.

Ninguém percebia que ela apenas cumpria seu papel na natureza.

E ela arrastava-se de um galho a outro à procura de sua felicidade.

Muito triste ela ficava quando via elegantes borboletas esvoaçando nos jardins.

Alegrando-os.

Beijando as flores como se enamorados fossem.

Elas davam prazer a todos que as viam.

Mas a lagarta era infeliz.

Ela queria ser feliz.

Ela rezava para sua Fada Madrinha, pedindo que todos os seres da floresta fossem felizes iguais às borboletas.

E se perguntava:

- Por que as borboletas são diferentes?

Certo dia, em sua incansável busca pela felicidade, estava chorando num galho qualquer, amargurada por sua vida, quando encontrou sua Fada Madrinha.

Ela, vendo aquela situação, perguntou o que acontecera para que tamanha tristeza tomasse conta daquele ser.

Ao que a lagarta respondeu, com sua voz doce e chorosa:

- Toda minha tristeza e infelicidade decorrem do meu aspecto repugnante, de minha forma disforme, de meus pêlos ácidos, de meu cheiro horrível.

Compadecida com tamanha infelicidade, a Fada Madrinha decidiu interceder junto ao Senhor da Floresta para reduzir o tormento daquele ser frágil e repugnante.

Então, a Fada Madrinha saiu em busca do Senhor da Floresta.

Procurou.

Procurou!

Encontrou.

Contou-lhe a história de desventuras da repugnante lagarta.

Ouviu sua sentença:

- Esta lagarta só será feliz e elegante como uma borboleta, quando encontrar uma amoreira, e ao lado da flor mais bela, junto à sua pétala mais perfumada, fizer seu castelo.

Satisfeita com o que ouvira, a Fada Madrinha ia saindo, quando o Senhor da Floresta a chamou e disse:

- Diga à lagarta que o caminho para a felicidade é árduo e doloroso.

Que somente alguns dentre os puros lá chegarão. Diga também que haverá muitas provações e que ela precisará de força, coragem e determinação para vencer todos os espinhos que encontrar pelo caminho.

E assim, orientada, saiu a Fada Madrinha.

Lá vai a Fada Madrinha à procura da lagarta.

Ela precisava informá-la das notícias do Senhor da Floresta.

Como a lagarta era lenta, não foi difícil achá-la.

A lagarta ainda estava próxima ao local onde a encontrara anteriormente.

Então lhe contou as boas novas:

- Lagarta! O senhor da floresta disse que você tem que achar a mais bela das flores de amoreira, fazer seu castelo junto à pétala mais perfumada e esperar.

- Mas como vou achar a flor de amoreira mais perfumada? Perguntou a lagarta.

- Ih! Que distraída eu sou! Comentou a Fada Madrinha.

- Como fui esquecer logo isso?!

- Não tem problema!

- Com minha magia, colocarei uma Estrela a te guiar.

- Ela ficará lhe orientando durante todas as noites até que você ache a flor de amoreira procurada.

- Persegue essa Estrela, segue teu coração, segue teus instintos e achará a tua flor de amoreira.

- Ah! Ele disse também para você não se preocupar com as provações, pois elas fazem parte das coisas que você tem que vencer para chegar à flor de amoreira mais bela.

A Fada Madrinha, pelo jeito, além de esquecida era atrapalhada e meio confusa para recados.

Ela se esquecera de dar o recado na totalidade.

E assim aconteceu.

A Fada Madrinha pronunciou algumas palavras mágicas em língua de fada e uma nova estrela muito brilhante surgiu no céu.

A lagarta passou então a seguir a Estrela.

Todas as noites ela avançava, incansável, sem saber para onde.

Seguia a Estrela.

Às vezes, quando aconteciam tempestades, pensava em desistir, pois a umidade amolecia sua pele.

Mas o desejo de ser bela e faceira como as borboletas, e a necessidade de alcançar a felicidade era mais forte.

Então prosseguia.

Até que uma noite, percebe um perfume maravilhoso.

Parou.

Olhou para sua Estrela Guia no céu e percebeu que ela, cúmplice, sorria.

Despede-se da Estrela também com um sorriso e, guiada pelo olfato e por seu instinto, prossegue até encontrar um lindo jardim.

Achara o jardim da felicidade.

Estava perto.

Estava perto de seu objetivo.

Faltava achar a flor de amoreira mais bela.

Continuou seguindo o perfume.

Pressentia que a flor de amoreira estava no lugar de onde vinha o perfume.

A cada rastejar, mais belo o jardim ficava.

E a lagarta prosseguia satisfeita.

Incansável.

A todos os seres do jardim que encontrava, perguntava:

- Hei! O senhor sabe onde fica a flor de amoreira mais bela?

E todos respondiam:

- Segue teu instinto!

- Segue teu coração!

E a lagarta prosseguia em sua busca.

Sabia que estava próxima da flor de amoreira, mas não sabia identificá-la.

Mas como em coisas de felicidade só o coração manda, de repente vê uma luz diferente vinda do lugar mais central de todo o jardim.

Rasteja naquela direção, sabia que afinal encontrara a mais viçosa e formosa amoreira que já vira.

E que nela, muito mais bela e formosa do que sonhara em seus momentos de descanso, a sua flor de amoreira estaria.

Lá estaria a flor de amoreira de sua transformação.

Lentamente chega até a amoreira.

Sobe nela trôpega.

Exausta.

Vez ou outra pára.

Retoma forças.

Prossegue.

Sabia que, para ser feliz, leve e esvoaçante como uma borboleta, tinha que enfrentar todas as provações.

Era o preço que tinha de pagar pra ser borboleta.

Tinha sido avisada pelo Senhor da Floresta.

De ramo em ramo.

Afinal, chega à flor de amoreira mais bela.

Desfolhando, procurou a pétala mais perfumada e fez nela, feliz, seu ninho.

Lá iniciou a construção de seu casulo.

Ali fez seu castelo.

Lá iniciou a metamorfose...

Perdeu os pêlos.

A pele lentamente foi tomando outra forma.

Seu corpo feio e enrugado foi ficando sem nenhuma semelhança com outro ser vivo.

As dores eram imensas.

A tudo suportava com resignação.

Lembrava que a Fada Madrinha tinha dito que a transformação era dolorosa.

Suportava a todas as inclemências com serenidade.

Afinal, ia virar uma borboleta!!!!

Estava feliz!

Seria feliz!

As tempestades aconteciam.

Noites de chuva!

Dias de temporal!

Lentamente, as formas da lagarta iam se modificando!

Em seu frágil castelo, sob aquela casca grotesca, formavam-se belas asas coloridas!

Daquela forma anterior apenas a casca lembrava distante como ela era.

A cada dia ficava mais feliz!

Estava virando borboleta!!!

Não via a hora de sair esvoaçando.

Não via a hora de sair bailando, de flor em flor, como se fosse pássaro.

E assim se passavam os dias.

Numa noite de tempestade, inesperadamente, uma lufada de vento joga um galho de roseira contra o castelo.

Um afiado espinho de uma roseira, enciumada com a beleza da futura borboleta, rasga sua pele.

De seu corpo, escorre um líquido perfumado de amora.

Numa outra lufada, do casulo rompido, cai desfalecido um corpo em metamorfose quase completa.

Naquela forma, antes grotesca, percebem-se belas asas coloridas já formadas.

O céu chora.

Chora por meteoros.

A noite chora.

Chora por orvalho.

As nuvens choram.

Choram lágrimas de chuva.

Na terra úmida, como se celebrando novas formas de vida, o corpo molhado da borboleta é carregado para longe da flor de amoreira mais bela, que ele tanto amara.

A Fada Madrinha chora por não ter alertado a lagarta sobre os espinhos que a roseira carrega.

O Renascer

Um corpo inerte como uma nau viaja.

Como se manejado por mãos hábeis, para bem longe, ele navega.

A chuva que cai sobre o jardim, cessa.

A água escoa.

Como se uma nau guiada por mãos inábeis, o corpo encalha.

Gotas de chuva, acumuladas em suas asas, refletem o alvorecer.

As nuvens dissipam-se lentamente.

Os raios de sol de um novo dia, o saúdam.

Um raio de sol, apaixonado pelo colorido de suas asas, aproxima-se.

Beija-as.

Seca-as.

Como num ressuscitar de corpos, ele recupera energias.

Em pequenos movimentos, se ergue.

Num misto de secar alguma gota persistente ou saber se suas asas existiam.

Num leve bater de asas, o corpo, antes desfalecido, inicia seu primo vôo.

Tímido.

Trêmulo.

Inseguro.

O corpo move as asas.

Ergue-se.

Voa.

Move as asas fortemente.

Voa alto.

Move as asas cada vez mais forte.

Voa cada vez mais alto.

Voa faceiro.

Voa cada vez mais faceiro.

Voa alegre.

Voa faceira.

Descobre ser Borboleta.

Percebe-se Borboleta.

Afasta-se, procurando outros lugares.

O vento a leva para locais mais belos.

Descobre-se superior.

Vê o mundo do alto.

Vê o mundo de outro ângulo.

Agora vê o mundo do alto de seu vôo de Borboleta.

Percebe um jardim.

Vê uma amoreira.

Vê uma flor de amoreira.

Lembra-se de sua amoreira.

Recorda de seu amor.

Aproxima-se ainda apaixonada.

Beija-a!

Aquela flor não corresponde a seu beijo.

Não era a sua flor.

Não era o seu amor.

Sente-se desprezada.

Procura outra amoreira.

Procura outra flor.

Outra flor de amoreira.

Beija-a!

Nenhuma emoção daquele corpo de flor.

Decepcionada.

Esquece rápido do primeiro amor.

Da amoreira mais bela.

Volúvel.

Parte em busca de outro amor.

Faceira.

Voa de flor em flor.

Promiscua.

Voa de amora em amora.

Busca amor.

Busca vida.

Voa!!!

Voa muito!

Beija muitas flores.

Cheira muitas amoras.

Voa!!!

Voa muito!

De flor em flor. Voa!!

Semeando amor.

Multiplicando vida.

Promovendo embriaguêses de néctares.

Promovendo orgias de pólen.

Despertando desejos.

O belo colorido de suas asas atrai olhares de cobiça.

Provoca ciúmes.

Paixões.

Ódios.

Vinganças.

Desejos.

Perseguições.

Inveja.

As horríveis lagartas querem ser como ela.

Cada vez mais faceira, voa.

De flor em flor, voa.

Beijando muitas flores,

Cheirando muitas flores,

Procurando outros amores.

Esquece da flor de amoreira mais bela.

Esquece daquela que tinha sido motivo de sua metamorfose.

Encontra outras borboletas, faceiras e belas.

Tão faceiras e belas como ela.

Namora.

Namora um.

Namora outro.

Descobre o amor.

Descobre um amor.

Descobre outros amores.

Descobre muitos amores,

Ama!!

Apaixona-se.

Apaixona-se perdidamente.

Ama!!!!!

Nidifica.

Nidifica a ermo.

Reproduz.

Povoa!!

Perpetua a espécie.

Cumpre seu papel no ciclo da vida.

Sua Fada Madrinha exulta.

Por “ela” ter sido feliz.

O Último Vôo

Uma borboleta voa alto.

Alto.

Cada vez mais alto.

Uma nuvem encobre o sol.

Entre a sombra das nuvens, a borboleta reflete nas asas, o último brilho do sol daquele dia.

A borboleta voa alto.

Alto.

Cada vez mais alto.

O sol se põe.

Ela voa alto.

Mais alto.

Cada vez mais alto.

Afasta-se da terra.

Afasta-se do sol.

Aproxima-se do céu.

Aproxima-se da noite.

Aproxima-se de uma noite de lua nova.

Na escuridão dessa noite sem lua, a borboleta brilha.

Ilumina.

Emite luz.

Emite a própria luz.

Emite luz própria...

... Olho para o alto.

Olho para o céu.

Lá no céu, uma estrela pisca.

Uma estrela que eu nunca tinha percebido.

Vem de uma constelação que não sei o nome.

Imagino que seja a de Virgem.

Uma estrela pisca.

Pisca feliz.

Pisca cúmplice.

Pisca sorridente.

Pisca irônica.

Pisca para mim.

Acho que é “ela” que deve ter chegado por lá.

RAIMUNDO CAMPOS
Enviado por RAIMUNDO CAMPOS em 01/06/2011
Reeditado em 15/06/2011
Código do texto: T3006997
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.