[A Manhã em que Não Havia...]
Ô merda de vida seca! Quem é o besta capaz de achar problemas no deserto... Pois se o problema é só o deserto? Não amanheceu nenhum problema de ontem que eu tenha de resolver... pois:
Não há uma carroça com rodas de aro de ferro a ser
aprestada para um dia inteiro de duro trabalho;
não há uma égua baia a ser arreada;
não há uma esteira de lascas de bambu a ser atada à carroça;
não há um chapéu-de-lebre(*) do qual eu devesse bater a poeira
de ontem;
não há um embornal com carne seca e farofa;
e não há uma garrafa de pinga 'marelinha que pudesse ficar presa a
um canto da carroça, para uns curtos goles esporádicos,
não há isso...,
não há aquilo...,
não há aquilo outro que me fazia feliz [alguns chamam de
"esperança"...] e que me fazia assobiar, distraído do passado,
uma modinha antiga ao longo da estradinha de terra da serraria...
Numa dessas manhãs com cara de cu-preto, típica aqui de Penas do Desterro, subitamente, dei-me conta de que não tendo:
uma carroça para um dia de trabalho duro,
uma égua baia,
uma esteira de lascas de bambu,
um chapéu-de-lebre que eu nunca tive [só de palha mesmo],
um embornal com carne seca e farofa, e que ficou mesmo só na
lembrança da matula de tropeiro que a minha mãe fazia,
e a garrafa de pinga? Essa, eu até tenho, mas não é aquela...
Sim, tomei tento... Oras... num clarão de relâmpago em mata escura, eu vi: o que eu estava mesmo vivendo era só, tão-somente só, uma triste e vazia manhã em que não havia... Ah, que falta danada, siá, que falta! Quem foi que me criou este deserto? Carece de responder?!
Esse miolo-de-pote que acabo de escrever explica [sem explicar] a minha resistência em interromper o concerto de Paganini que eu estava ouvindo, e apear do meu Honda. Levei mais de 10 minutos para sair do carro e me dirigir ao lugar que chupou meu sangue, de canudinho, e tirou o tutano dos meus ossos... e o pior: com a permissão da minha fraqueza!
Bom dia para você, raro leitor que chegou até aqui!
[Penas do Desterro, 31 de maio de 2011]
(*) - Aos que são estranhos à linguagem do Brasil eu ensino: um "chapéu-de-lebre" é, simplesmente, um chapéu de feltro, uai! Só um jeito de falar mais macio que o próprio feltro... Pessoalmente, prefiro o encontro de "b" e "r" do que o de "t" e "r"...