[À Frente, o Deserto]
Livros, papéis amarelecem à volta de mim, e sei que nada posso fazer. No deserto onde ora vagueio, textos lidos há tempos perderam o viço, o sabor de novidade, e agora, são como ossos secos, descarnados. Será? Será? E o que deles aprendi terá me valido? Ensinaram-me a morrer... mas neste aspecto, fui aluno rude... fraquejo diante do escuro.
Enquanto for possível a ironia, o medo não me quebrará a espinha, e nem me fará suar frio: eu tenho o pernicioso hábito da releitura de mim, e do mundo. E sempre me surpreendo com o fato de ter havido mundo antes que eu chegasse. E assim pensando, sou imensamente grato aos árabes porque guardaram Platão para mim, este vivente insignificante de dois mil anos depois.
À frente, a secura do deserto que os meus olhos morrentes descortinam, com certeza, preservará Platão para os viajantes de outros milênios. O som crescente do galope da Morte esvazia as minhas mãos — já me é difícil agir em qualquer direção. Não importa: na corrente misteriosa dos séculos, conforta-me saber que não fui e não serei o único a sentir espanto diante do "Mito da Caverna"!
Somos poucos, muito poucos os que leem. Sempre fomos raros — e é isto que torna mais admirável e mais incompreensível [aos meus olhos, pelo menos] o amarelecimento destes velhos textos que as minhas mãos acariciaram, e que me proporcionaram o sabor de ideias eternamente novas! Que viagem tem feito estes textos! Por quanto tempo viajarão ainda?
Falei de Platão, mas poderia falado de outros tantos autores que chegaram até as minhas mãos. "Dom Quixote" também foi guardado para mim...
[Cá estou a conversar com algum leitor imaginário! Poucos os que leem, e poucos os que conversam. Por isto eu escrevo, pois aprendi que falar é inútil, mas conversar não!]
[Penas do Desterro, 30 de maio de 2011]