Lembranças, Crises e Descobertas

A porta não pára de se abrir. A sala não pára de se encher com conhecimento, angústia, vários tipos de ambição, uma grande dose de indiferença, e também algum desespero. Dizes que juntos poderíamos construir catedrais, estabelecer políticas, condenar homens à morte, e administrar os assuntos de várias repartições públicas. O grau de experiência que partilhamos é bastante profundo. Mas o que aconteceu mesmo quando os cisnes partiram para novos estados e lagos, e a chuva cessou com toda a sua frigidez? Eu me enganei por pensar que eu estava enganado sobre ti, sobre o mundo, sobre as coisas.

Para que olhar o relógio que está em cima da lareira? Sim, o tempo passa. E nós envelhecemos. Contudo, sentia-me bem em estar sentado junto a ti, eu aqui e tu aí, nesta sala iluminada pelo fogo de nossos sentimentos. O mundo foi revistado até ao mais ínfimo pormenor, e nele já nada resta, nem mesmo flores.

Todavia, quando entravas, tudo se modificava em mim e no mundo. As árvores, os carros, até os pires transformavam-se quando aqui chegavas de manhã. Pondo de lado o jornal, pensei que só o amor faz com que as nossas vidas mesquinhas tenham algum esplendor e valham a pena ser vividas.

Foi então que me deixei invadir pelas dúvidas do costume. Apertei-te a mão. Deixaste-me. A descida até o ponto do ônibus foi como experimentar a morte. Somos como que separados, dissolvidos, por todos aqueles rostos e também pelo vento oco que parece rugir naqueles corredores desertos. Sentei-me a observar o meu próprio quarto. As cinco fiquei a saber que eras infiel. Peguei no telefone e o zumbir estúpido da sua voz a ecoar no quarto vazio fez com que o meu coração me caísse aos pés. Foi então que a porta se abriu e tu apareceste como beleza no olhar e hipocrisia na alma.

É assim que tecemos os mais delicados filamentos ao nosso redor, construindo um sistema. Platão e Shakespeare estão incluídos, o mesmo se passando com uma série de gente obscura, de pessoas sem qualquer importância. Odeio homens e mulheres que usam crucifixos para denotar suas pseudo-convicções e bandeiras. Odeio cerimônias, lamentações, e a figura trêmula e triste de Cristo colocada junto a outras figuras trêmulas e tristes. Já não basta o deserto onde inserimos falsos oásis de nossas vidas!!! Odeio igualmente a pompa, a indiferença e a ênfase, sempre colocado no local errado, de todas as pessoas que se pavoneiam à luz de candelabros envergando vestidos de noite, estrelas e condecorações. Há ainda os que urinam contra as vedações ou contra o sol poente nas planícies iluminadas pela luz fraca do Inverno. Constitui um enorme alívio ter alguém a quem fazer sinais e não pronunciar qualquer palavra.

Seguir os carreiros escuros da mente e entrar no passado, visitar livros, empurrar ramos e arrancar alguns frutos. Então, tu pegavas neles e ficavas em estado de êxtase. Enquanto isso, eu observava os movimentos descontraídos do teu corpo e maravilhava-me com à vontade que os caracterizava, a sua força, o modo como abres as janelas de par em par, e tens a mesma facilidade em mover ambas as mãos. Mas, infelizmente, ou felizmente quem sabe, eu comi do fruto da árvore do conhecimento, e meus olhos se abriram para a realidade de tudo, e nunca mais fui feliz.

Quero alguém que se sente a meu lado depois de toda a angústia e correria do dia-a-dia, das suas conversas, esperas e suspeitas. Depois das brigas e reconciliações, preciso de privacidade, de estar a sós comigo mesmo, de fazer calar este tumulto dentro de mim.

Devemos fazer tudo o que nos permita exprobrar o horror da deformidade. O melhor será lermos os escritores que apregoam a austeridade e a severidade romanas; o melhor será procurarmos a perfeição por entre as areias. Sim, mas o certo é que adoravas deixar escapar a virtude e a austeridade dos nobres romanos sob a luz cinzenta dos teus olhos, das ervas que dançam a compasso com as brisas estivais.

Tu és tu. É isso que me consolava da falta de muitas coisas: sou feio, sou fraco, fui feito da depravação do mundo, do passar da juventude, da morte dos filósofos, e de todo um sem-número de amarguras, rancores e invejas.

Entretanto, o melhor será abolirmos o tique-taque do relógio com um único gesto. Durante alguns instantes, tudo estremeceu e se curvou devido à incerteza e à ambiguidade, como se uma grande borboleta noturna que percorresse a sala tivesse ocultado com as asas a enorme solidez das cadeiras e das mesas.

E o tempo deixa cair a sua gota. A gota que se formou no topo da alma acaba por cair. No topo da minha mente, o tempo deixou cair a sua gota. Esta caiu na semana passada, quando me estava a barbear. De súbito, com a lâmina na mão, apercebi-me da natureza puramente mecânica do ato que desempenhava (era a gota a formar-se) e, não sem alguma ironia, dei os parabéns às minhas mãos por conseguirem levar as coisas até ao fim. Barbear-se, comer, trocar a roupa, ir ao trabalho e sorrir. A gota caiu. Durante o dia, a intervalos regulares, sentia que o espírito como que viajava até esse espaço vazio, perguntando: “O que se perdeu? O que terminou?”. Ainda murmurei: “Acabado e bem acabado, acabando e bem acabado”, consolando-me com palavras. As pessoas repararam na expressão vazia do meu rosto e na inutilidade das conversas enquanto mais uma cerveja era trazida até nossa mesa. As últimas palavras das frases foram-se apagando. E, quando apertava o casaco e me preparava para ir para casa, disse de forma dramática: “Perdi a juventude.” Mas o que seria de fato aproveitar ou desperdiçar a juventude? É curioso que, quando ocorre uma crise, há uma frase que insiste em nos vir socorrer, mesmo nada tendo a ver com o caso, trata-se do castigo de viver numa civilização antiga e munida de verdades, cigarros, internet e antidepressivos.

A gota que caiu nada tinha a ver com o fato de estar a perder a juventude. Esta gota nada mais era que o tempo a atingir um certo ponto, imperceptível a consciência e ao corpo em seu início. O tempo, que é como um pasto soalheiro coberto por uma luz trêmula; o tempo, que se espalha pelos campos ao meio-dia, fica como que suspenso num determinado ponto. Semelhante a uma gota que cai de um copo cheio, assim o tempo cai. São estes os verdadeiros ciclos, os verdadeiros acontecimentos. Então, como se toda a luminosidade da atmosfera tivesse sido retirada, vejo-lhes o fundo vazio.

A fim de que mesmo, vou querer encontrar um motivo, ou ainda, voar até aos bosques e afastar as folhas dos loureiros à procura de estátuas? Dizem que devemos enfrentar a tempestade acreditando que o Sol brilha do outro lado; que o Sol se reflete em lagos cobertos de andorinhas. (Estamos em Maio; os pobres seguram caixas de fósforos nos dedos roídos pelo vento.) Dizem que só aí se poderá descobrir a verdade, e que a virtude (que aqui se deixa corromper nos becos) apenas lá é perfeita. Contudo, vê-se obrigado a se sentar no escritório, rodeado de computadores e telefones, e descobrir tudo o que é necessário à nossa reabilitação, e à reforma de um mundo que ainda não nasceu.

Entretanto, tu, e é por isso que quero diminuir a tua hostilidade, esses olhos castanhos, fixos nos meus, o teu vestido pobre, as tuas mãos assassinas, e todos os outros emblemas característicos do teu esplendor maternal - fixaste-te como uma lapa à mesma rocha. Sim, é verdade, não quis te magoar; apenas refrescar e restaurar a crença que nutro em relação a mim mesmo, e que desapareceu quando entraste. Acabamos por escolher (às vezes parece que a escolha foi feita por nós) um par de tenazes, as quais nos foram colocadas entre os ombros. Escolho, ou me iludo que escolhi. Sigo o fio da vida para dentro, e não para o exterior, em direção a uma fibra crua desprotegida. Sinto-me sufocado e magoado pelas marcas deixadas por mentes, rostos, e outras coisas tão sutis que, muito embora possuidoras de cheiro, cor, textura e substância, não têm nome. Para vocês, que vêem os limites estreitos da minha vida e a linha que ela não pode ultrapassar, não passo de um escritor ressentido. Contudo, e para mim, não conheço limites; sou uma rede cujas fibras se estendem de forma imperceptível por todas as partes do mundo e do cosmos. É quase impossível distingui-la do que nela se encontra envolvido. Tudo o que é amorfo, oculto e errante eu detecto; examino, sondo e distingo. Por baixo dos meus olhos, abre-se um livro inédito e indescritível; vejo o fundo: o coração - observo as profundezas. Sei quais os amores que estão prestes a se incendiar; o modo como a inveja espalha por toda a parte os seus raios verdes; as formas intrincadas como os amores se cruzam; como os amores se atam e separam brutalmente.

A ilusão regressa, à medida que vão descendo a avenida. Volto-me a interrogar: “Que será que penso de vós? Que pensarão vocês de mim? Quem sois vós? Quem sou eu?” Tudo isto faz com que sobre nós volte a pairar um ar algo constrangido, e o pulso volta a bater mais depressa, os olhos iluminam-se, e toda a insanidade da existência pessoal, sem a qual a vida cairia redonda e morreria, tudo isto recomeça. Eles estão sobre nós. O sol poente paira por sobre esta urna; abrimos caminho até a corrente característica do mar, violenta e cruel.

O silêncio vai caindo gota a gota. Forma-se no ponto mais alto da mente e vai-se acumulando em poças e labirintos. Só, só, para sempre estou e sou só; a escutar o silêncio cair e estender-se em círculos até aos limites extremos. Saciado e insatisfeito, solidifico-me e condenso-me em novas nuvens; eu, a quem a solidão destrói e renasce, deixo cair o silêncio flamejante, gota a gota.

Gilliard Alves

P.S: Dedico este texto a Ian Curtis e a Kurt Cobain, duas grandes almas da música alternativa.

Gilliard Alves Rodrigues

3h42m da madrugada.

Gilliard Alves
Enviado por Gilliard Alves em 18/05/2011
Reeditado em 13/11/2012
Código do texto: T2978121
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.