Santuário
Por Ramon Bacelar
Minha casa é meu santuário: em horas de chumbo e noites cinzentas me protejo no conforto do seu útero; pela manhã, antes de outra partida, não sem um pouco de temor e relutância, com uma faca me sangro, desprendo-me de seu cordão umbilical e nasço para mais um dia de aflições e incertezas.
Em dias quentes, minha protetora abre um sorriso para as frescas rajadas de vento que acalmam e refrescam, em noites frias, abranda trovões e tempestades com espírito hospitaleiro. Visitas? Sempre bem vindas, embora às vezes me pareça que suas manias e singular aparência despertem mais curiosidade que interesse: sejam bem-vindos... Entrem sem bater!
Hoje cheguei mais cedo e sem como nem porque, eles entraram ...Sem bater: intimidaram e me conduziram, e enquanto me perdia em infernos de ansiedade e imobilidade convulsiva, recordava os dias feli...agradáveis que passei em sua companhia, nas manhãs que a contemplava e admirava perdendo-me nos infinitos detalhes e idiossincrasias de sua constituição: a cama que faltava, os tijolos inexistentes, as colunas invisíveis, a iluminação solar, a cerca de vento, o chuveiro de chuva, o teto de nuvens e estrelas, as portas que não eram, as janelas que poderiam ter sido, o piso de mato e terra batida; na intimidade e infinitude de seus espaços solitários eu sentia e “vivia”... E em sua discrição e liberdade, era livre.
E agora, trêmulo, ansioso e ofegante, salto do carro escoltado por duas formas que me conduzem por salas e corredores carregados de memórias, histórias e significados, repletos de signos e símbolos que me inflamam com a certeza de que agora retorno de onde nunca deveria ter saído, meu útero de concreto que almas confortadoras chamam de casa de repouso e meus amigos verdadeiros...de solitária psiquiátrica.
FIM