ALFA E OMEGA
Alfa e Omega
Conheci o meu princípio e o meu fim e tive medo.
Um medo expectante e o tempo não passava
para que eu pudesse ultrapassar aquela situação.
Não temia dor física, nem o desconhecido que sempre me fascinara.
Era o estar absolutamente só, sem ninguém ao meu lado,
só tinha a mim mesmo como companhia numa paragem linda e desconhecida.
O fato me amedrontava sobremaneira e não conseguia pensar.
A ausência, muito fortemente sentida, de algo indescritível,
oprimia e angustiava – a mais profunda nostalgia que já sentira.
Nem uma oração, repetida mecanicamente tantas vezes,
penetrava naquela minha solidão petrificada.
Estava só e vazio de mim.
O não ser capaz de mais pensar era a mais atemorizante experiência,
a de não conseguir, logicamente, estruturar as percepções que
continuavam a ser captadas pelos sentidos e entendidas pela razão,
mas tudo desorganizadamente, sem conclusões e verdades reconhecidas,
de que tanto dependemos para existir.
Eu sabia que fazia parte daquele lugar desconhecido.
Desde sempre me era caoticamente intima aquela visão
de rochas, mar, neve, vento, silêncio, frio, cores diversas, solidão...
Era uma sensação de se estar sendo sugado por um enorme redemoinho
em direção a lugar nenhum.
Paralisado prestava atenção no meu princípio
que se iniciara com o surgimento do Cosmo e
no meu fim, que principiara com o processo de reintegração às minhas origens
que agora, ali, começava a se fazer nitidamente sentir.
Tive medo de ficar comigo mesmo, um quase pânico
de relembrar o meu passado, constatar o meu presente e imaginar
as poucas possibilidades do meu futuro.
Quem chamar como companhia, naqueles momentos que percebia serem finais?
De alguma forma repelia a idéia de compartilhar o instante indecifrável e amedrontador,
mas que era apenas meu.
Experimentava algo que excitava com a possibilidade de entendimento e paz.
Havia, naquele instante e naquele ponto da Antártica,
o vento sem ruído, o frio enregelante e uma luz extraordinária
que prazerosamente assustava, pois tudo deixava ver.
Tal constatação me trouxe a indagação: era minha intenção, realmente,
compreender a minha vida e assumi-la, determinado e confiante,
com a certeza da possibilidade de felicidade ou do mais profundo desespero
serem encontrados a qualquer instante?
Ou, já exausto, derrotado pelas minhas intenções, continuar sendo conduzido por falsas
e deformadas paisagens, lugares, falas e pessoas, com as quais já me acostumara?
Intuí como a morte poderia se instalar, sem dor,
até com a delicadeza de um sono reparador, prenuncio de um descanso
e relaxamento completo, das preocupações e
das indagações, que há tantos anos me acompanhavam...
Estava, sem ter planejado, portanto despreparado,
no santuário da pura contemplação do belo incompreensível,
o – “splendor ordinis” - do mistério da criação.
Tudo estava lá, nada era preciso acrescentar ou mudar.
Não desejava mais nada – só pensava em ali permanecer,
mesmo amedrontado e isolado, olhando para o vazio tão rico de formas e
de infinitas ilações, as composições que se quisesse fazer.
Quieto e sem cansar, me esforçando para que não surgisse,
no turbilhão de imagens e conceitos que vagavam na minha mente,
o pensar na mulher amada que deixara, e que se ali se apresentasse
tudo faria ruir, separando o sonho real do permanente sonho ilusório
e eu, então, teria de voltar...
Sabia de que ela sentia o meu silencioso desespero,
como só as mulheres que amam são capazes de sentir e entender
vazios existenciais e procuras infrutíferas pelo sentido da vida.
Queria acreditar ter encontrado o lugar da minha recomposição,
propiciado pelo meu solitário fim, que já se adiantava no seu processo inexorável.
Poder ali permanecer, submisso à tentação que se impunha, tão fortemente,
e me incorporar à paisagem, prazerosamente, que convidava,
como que num abraço silente, fraterno e amoroso, que há tanto ansiava.
Não permitiu o navio, que apitava ao longe, me arrancando do devaneio e
chamando por mim - aquele que ousara a se desgarrar do grupo -
a retornar ao desgastante convívio humano,
aonde parece ser proibido pensar livremente, rompendo com as rotinas padronizadas,
vendo e apreciando paisagens novas, aquelas que a vida proporciona
só aos mais sensíveis, audazes e atentos desbravadores que são.
Uma vez mais não ousei o perigoso desconhecido, potencialmente belo e tranqüilo.
Pensei, ao caminhar trôpego e em decomposição, em direção à embarcação:
- o início de tudo é o mistério da existência do Universo que não reponde,
por mais que se investigue, o porquê dele existir.
Conclui que a nítida consciência a que chegara, a do meu fim, a desintegração física e a reintegração cósmica das minhas partículas formadoras, que ali, naquele instante e lugar, se iniciara, me daria a necessária força para retornar ao grupo a que pertencia e contemplar o término da minha existência nos braços da minha amada, amparado pela solicitude de poucos amigos, compreendido e abençoado pela sombra da Cruz, que, queiramos ou não, se projeta sobre todos nós, misteriosamente fincada por Deus no centro das estrelas e galáxias,
como braços do inacessível Maestro que rege a dança das esferas,
onde nós, humanos, participamos sem termos sido consultados do nosso interesse
em ali estar, assim impotentes, ignorantes e inseguros de tudo,
mas por fugazes momentos livres e felizes,
na incompreensível e fantasticamente dramática festa da vida e da criação.
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Eurico de Andrade Neves Borba, Ana Rech, maio de 2011.