Confissões de um Poeta em Crise

É por isso que odeio os espelhos, porque nunca mostram o meu verdadeiro rosto. Quando estou só, é com frequência que me deixo cair no vazio. Tenho de ter cuidado e ver onde ponho os pés, não posso tropeçar na orla do mundo e cair no vazio. Tenho de bater com a cabeça nas paredes para poder voltar ao meu próprio corpo.

Apanharei flores; unirei todas as flores numa grinalda, e, depois de está estar pronto, irei dá-la de presente... Oh! A quem? O fluxo do meu ser não corre como deveria; um curso de água profundo esbarra em qualquer obstáculo; sacode-se; luta; qualquer nó existente no centro oferece resistência. Oh, esta dor, esta angústia! Desfaleço, caio. O meu corpo perde a rigidez; é como se me tivesse tirado o lacre, estou em brasa. Agora, a corrente transformou-se num fluxo fertilizador, forçando tudo o que encontra pela frente. A quem oferecerei tudo o que corre através de mim, pelo meu corpo quente e poroso? Colherei um ramo de flores e vou oferecê-las... Oh! A quem? É com isto que estamos comprometidos; é a isto que estamos ligados, como corpos a cavalos selvagens. Contudo, inventamos engenhos destinados a encher as rochas e a disfarçar as fendas.

A superfície da minha mente desliza como um fio de água cinzento-claro que reflete tudo por onde passa. Não consigo me lembrar de meu passado, do meu pós-futuro, nem sequer da cor dos meus olhos, já que é para não falarmos da opinião geral que formulo ao meu respeito. Apenas em situações de emergência, num cruzamento, numa esquina, me vejo frente a frente com o desejo de preservar o meu corpo, o qual me agarra e me obriga a parar aqui, frente a muros pichados que não me dizem nada. Parece que nos recusamos a deixar de viver. Depois, a indiferença volta a descer sobre nós. O rugir do trânsito, a passagem de tantos rostos impossíveis de diferenciar, este ou aquele caminho, tudo me intoxica e me faz sonhar; tudo apaga as feições das faces dos que comigo se cruzam. As pessoas quase me podiam atravessar. Para mais, qual o significado deste instante, deste dia específico em que me vi envolvido? Os ruídos do tráfego podem ser comparados a outros sons: o das árvores a restolhar e o rugir dos animais selvagens. O tempo como que fez recuar um pouco a sua progressão; o nosso avanço parece ter sido cancelado. Para falar com franqueza, acho que os nossos corpos estão nus. Estamos apenas revestidos por tecidos pintados com botões, sapatos e brincos de tantas modas estúpidas; e por baixo destes passeios existem conchas, ossos e silêncio.

E claro que, tal como acontece durante o sono, as minhas tentativas para ir além da superfície do rio, os meus sonhos são interrompidos, puxados, distorcidos por sensações, espontâneas e irrelevantes, de curiosidade, ganâncias e desejos.

Não, mas desejo ir mais fundo; visitar as profundezas; de vez em quando dar-me ao luxo de nem sempre agir, mas também de explorar; de escutar sons vagos e ancestrais de ramos a partir, de mamutes a pisotear trens e ônibus; de me deixar levar pela fantasia impossível de abraçar o mundo inteiro com os braços do conhecimento - algo francamente impossível para aqueles que agem.

{Eu te esperei tanto, enquanto os Campos de Trigo choravam as sete solidões de meu amor por ti.}

Céus! Não estarei eu, à medida que avanço, a ser percorrido por estranhos tremores e vibrações de simpatia, que, a nada terem a ver com um ser individual, me pedem para abraçar a multidão, estes cidadãos, estudantes, e excursionistas baratos; estas mulheres furtivas e escorregadias que, ignorando a sombra negra que sobre elas paira, olham as montras das lojas?

Porém, estou consciente da nossa existência mais do que efêmera. Todavia, é verdade que não posso deixar de negar a sensação de que a vida me foi misteriosamente prolongada. Será que poderei ter filhos, lançar sementes que consigam sobreviver a esta geração, a estes indivíduos eternamente condenados, arrastando-se mutuamente pelas ruas numa competição incessante? As minhas filhas virão passear aqui em verões que ainda não chegaram; os meus filhos desbravarão outros campos? É por isso que não somos gotas de chuva, pastoreadas pelo vento; fazemos florescer os jardins e rugir as florestas; não cessamos de tentar tomar formas diferentes, isto para todo o sempre.

Esses solilóquios nas ruas secundárias não tardam a perder o interesse. Preciso de uma audiência. É precisamente aí que reside a minha desgraça. É sempre isso que corta as arestas da frase fina, impedindo a sua formação. Não me consigo imaginar numa festa, lojas, igrejas, bancos, de aspectos sórdidos, a pedir as mesmas bebidas com rótulos diferentes, dia após dia, e a me deixar embebedar completamente num só líquido: esta vida. Concluo que, para ser eu mesmo, necessito da luz dos olhos de terceiros, e por isso não posso estar completamente seguro daquilo que sou. Os seres autênticos só se revelam de forma completa na maior das escuridões. Ressentem-se da luz, das cópias. Destroem os quadros anteriormente traçados a seu respeito, atirando-os contra o solo. As palavras lembram blocos de gelo. São sólidas, compactas, douradas, enganosas.

Então, depois desta sonolência, desejo brilhar, brilhar à luz que emana dos rostos dos meus raros amigos. Tenho estado a atravessar o território sombrio da não identidade. Trata-se de uma terra estranha. Num momento de calma, num momento de satisfação avassaladora, escutei os suspiros da corrente que flui e reflui para lá deste círculo de luz brilhante, deste tamborilar de fúria insensata. Por breves instantes, fui possuído por uma enorme calma. Talvez a isto se chame felicidade. Uma série de sensações irritantes me fazem voltar a mim; curiosidade, avidez (tenho fome), e o desejo irresistível de ser eu mesmo. Penso nas pessoas a quem tenho coisas para dizer: junto delas sou multifacetado.

Quem nos faz compreender o quanto são falsas estas tentativas de dizer: “Sou isto, sou aquilo”, as quais nos vão surgindo como se fossem pedaços separados de um corpo e de uma alma. O medo fez-nos pôr qualquer coisa de partes desconexas. A vontade fez com que algo se alterasse. Tentamos acentuar as diferenças. O desejo de estarmos separados fez com que sublinhássemos os nossos erros, e tudo o que nos é próprio. Contudo, há uma corrente que nos cerca, um círculo azul-metalizado.

Tédio de ser-me a mim; tédio de pensar, de escrever, de ler, de comer; tédio de sempre estar entediado. Tédio desta palavra, e de todas as coisas.

Poderá ser ódio, poderá ser amor. Trata-se de um curso de água violenta e negra, que, se olharmos bem para ele, nos deixará ficar tontos. Estamos numa espécie de parapeito, mas temos vertigens se baixarmos os olhos. Poderá ser amor poderá ser ódio, mais ou menos como o que meus raros amigos sentem por mim. Todavia, o ódio que sentimos é quase impossível de separar daquilo que chamamos amor. A Indiferença é o anzol no âmago da alma de cada indivíduo.

{Eu clamei tanto por teu nome, enquanto os Campos de Trigo sangravam as doze angústias de meu amor por ti.}

Observo as pessoas: as mulheres andam como se na rua não existisse um abismo, nenhuma árvore de folhas rijas através da qual é impossível passar. Não há dúvida de que merecemos ser soterrados. Somos terrivelmente abjetos, avançando de olhos fechados. Mas por que razão me deverei submeter a todos esses embustes tão sedutores? Para quê tentar erguer o pé e subir as escadas? É aqui que me encontro; aqui, a segurar meu coração mais puro que o universo. O passado (os dias estivais e as calçadas onde nos sentávamos) vão desaparecendo como se fossem papéis queimados contendo olhos vermelhos. Sim, muito amei excessivamente, porém o rio nada me trouxe que tanta eu desejava.

Ah! Se as ondas se abrissem e um monstro surgisse por entre elas. É preciso pôr de lado invejas e antipatias e não interromper as preces do silêncio. É preciso ter paciência e um cuidado infinito, deixando que a luz descubra as coisas só por si, quer se trate das patas delicadas das aranhas percorrendo uma folha, ou o som da água a escoar-se por um esgoto qualquer sem importância. Nada deverá ser rejeitado por medo ou horror.

O poeta que escreveu esta página (aquilo que leio enquanto os outros

falam) retirou-se. Não existem vírgulas nem pontos e travessões. Tudo morreu agora. Os versos não se sucedem com a métrica conveniente. A maior parte das coisas não faz sentido. Temos de ser céticos, todavia isso não quer dizer que não deitemos as precauções para trás das costas, e não aceitemos tudo o que nos entra pela porta. Há momentos em que devemos chorar aos gritos; outras, servimo-nos de um machado para cortar de forma impiedosa todo o tipo de cascas e outras excrescências. E assim (enquanto eles falam) deixar a rede mergulhar cada vez mais fundo, para depois emergi-la. É então que trazemos à superfície tudo o que ele e ela disseram, fazendo poesia com o sangue de minha própria dor. Já ouvi todos vocês falarem. Foram-se todos embora. Estou só. O fato de poder ver o fogo consumir-se eternamente, como uma caldeira, como uma fornalha infernal, deve alegrar-me. Não é masoquismo. Jubilai com a destruição meus amigos. Agora, um pedaço de madeira assemelha-se a um cadafalso, a um poço, ou ao vale da infelicidade onde nós construímos nossas esperanças e pontes.

Atiro os pensamentos aos quatro ventos, tal como um homem atira as sementes ao ar, as quais caem por entre a luz do sol-poente, indo cair na terra previamente arada pela Morte; brilhante, tenra e comprimida, onde o Nada se encontra e brota sua insaciável seiva.

{Eu te amei tanto, enquanto os Campos de Trigo queimavam todos os meus sonhos que eram sedentos por tua presença.}

Gilliard Alves Rodrigues

Acaraú, 08 de Maio de 2011.

2h13min da manhã

Gilliard Alves
Enviado por Gilliard Alves em 09/05/2011
Código do texto: T2959087
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