Um estranho presente
A gripe veio derrubando pra valer. E eu não escapei da rede de arrasto dela. Aguentei oito dias de pé, mas quando meu filhão conseguiu sair da cama e comer por dois dias seguidos, retendo o alimento no estômago, aí tombei.
Alguém já viu uma mãe ficar deitada dois dias seguidos sem que esteja operada ou se recuperando de um acidente? Se for por causa de uma gripe, ela só abaixa as armas quando todos da casa ficam de pé. Tive febre, a garganta fechou; frio horrível, apetite zero (Já disse pro meu esposo: ‘Quando eu fechar a boca rejeitando comida pode acreditar que a coisa é séria). Deitada, coberta com dois edredons, só queria sossego.
No dia seguinte, me levantei com dificuldade, cuidei de algumas coisinhas, mas às doze horas voltei a deitar esquecendo-me de colocar a segunda refeição dos cachorros. Quando levanto por volta das cinco horas da tarde, fui procurá-los para colocar a comida dos ‘esquecidos’.
Percebi que estavam diferentes, e achei que poderia ser que tivessem percebido que eu não estava bem de saúde. Fui até eles levando a sacola com a ração e já me preparava para pedir desculpas. Pensei: “Depois que comerem vão fazer a costumeira festinha...” Mas minha intuição falou mais alto. “Esses moleques andaram aprontando. Não estão sensíveis à minha doença nem estão fazendo birra porque me esqueci de colocar a comida deles.”
- O que vocês fizeram? Estão todos dois desconfiados? Falei com voz forte e demonstrando autoridade.
Os cachorros murcharam as orelhas, encolheram os rabichos e olhavam-me por debaixo dos olhos.
- Quero saber o que fizeram?
Foi aí que mesmo com fome os dois foram pegar algo e depositaram aos meus pés. Quando olhei para aquele presente, tive vontade de esganar os dois.
- Como puderam fazer isso? Seus malvados, assassinos!
Nenhum dos dois comiam. Continuaram cabisbaixos... Quando fui apanhar o cadáver percebi que não havia nenhuma lesão de perfuração de dentes. Ele estava intacto, apenas com o pescoço e uma asinha quebrados. Alguns arranhões... Tudo causado pela altura da queda.
Foi aí que me dei conta que os cachorros mesmo famintos guardaram um presente cadavérico para mim. Olhei para os dois. Nenhuma mancha de sangue neles, apenas no local onde a ave caíra. Era um pardalzinho de dias. O jeito era enterrar o coitado.
Pedi desculpas, claro, recebi uma bronca da minha consciência (‘ Você julgou precipitadamente’), encolhi-me debaixo das cobertas e fui terminar de ler: “Brasil: de Castelo a Tancredo” – Eita livro bom! Mas as letras miúdas cansam meus olhos. Quanto à gripe... O jeito é me conformar com o desconforto e esperar a crise passar.