Holocausto Nunca Mais —PsyCity IX (Romance Neo-Pós-Moderno)
CONTATO DO 4º GRAU
COM HABITANTES DO
“SUBWAY” LEMURIANO
Os membros da Expedição Norton despertam no acampamento do longo e estranho sonho. Foi tão real, terei mesmo só sonhado? Pergunta-se Tauil. Que pesadelo exclama de si para consigo Vassari, esse lugar vira as idéias pelo avesso. Hermann está visivelmente perturbado. Norton distancia-se do grupo em direção aonde presume achar o caminho que conduz ao poço. Terei mesmo apenas sonhado? Terei mesmo ido e voltado desse lugar? Quando Rossi resolve segui-lo, percebe que ele está a caminhar de volta, apressando-se, em sua direção.
Ao ver dezenas de crianças de pele morena, cabelos negros e castanhos, algumas alouradas, olhos azuis, outras de tez escura e olhar amendoado, calçadas com sapatilhas acinzentadas que se ajustam aos dedos, feitas de algum material que adere à pele, Rossi também se dirige de volta ao acampamento. A atenção de todos concentrada, ora da aparência física, ora na roupa inteiriça das crianças. Presume-se que em algum lugar há um zíper com fecho vertical na parte interna das vestimentas.
O acampamento completamente cercado, elas continuam a sair de alçapões, como se o subsolo estivesse coberto deles. A expressão inexpressiva dos rostos faz com que os adultos vejam nelas o que melhor lhes aprouver. Os olhos grandes, o nariz delgado, os ouvidos minúsculos e a boca, um pequeno traço. Dão-se as mãos em volta deles.
— Tudo bem, crianças, viemos de cima, que é que vocês querem? Norton tenta manter o brio, a liderança.
— Shhshshshhhissssonnn. Um zunido, ao modo de um assobio, precede as respostas nítidas das crianças dentro da mente deles:
“Tudo bem adultos, estamos aqui, que podemos fazer por vocês”?
— Conhecer o mundo de vocês. Até agora vocês eram mais mito que realidade. A fala de Vassari em iídiche soa insolente e justificativa.
— Griphhhsslllunnnssh, é a resposta de uma delas. Simultaneamente à emissão da sonoridade sibilante, surge, clara, na mente deles a pergunta:
“As armas. Faz parte dos costumes colonialistas de vocês: corrupção, invasão, mentira, agressão e domínio pela força, necessidade de ação pelo terror: a covardia é o traço mais característico de sua raça. Seus motivos são sempre nobres: salvar as almas, trazer a religião aos silvícolas, Deus e o progresso. As consequências dessa infiltração de boa vontade são doenças, violência, medo, caos, grande aumento da quantidade de escravos e concentração de riqueza e poder nas mãos de poucos.”
— As armas são apenas para defesa, apela Vassari.
— Shhshshsoinonsshpr. A tradução do som do zumbido se faz ouvir nas mentes do pessoal da Expedição Norton:
“A tecnologia de defesa de vocês construiu bombas de fissão e fusão nuclear capazes de destruir este planeta mais de uma centena e meia de vezes. Por trás dessa “inocente” incoerência. prometem paz na Terra aos homens de vontade, às vontades semelhantes às suas. Armas de defesa. A linguagem falada de vocês é um desvio padrão para a mentira. Tudo e todas as outras iniquidades vêm daí, e são mais numerosas do que os fios de cabelos de suas cabeças.”
— Desculpem se invadimos sua morada. Somos parte de uns povos inquietos, interessados pelo inusitado, que cedem ao impulso pela aventura. Que deseja fugir do tedioso cotidiano das grandes cidades. Vocês eram folclore, agora serão um segredo.
Por trás da convicção de Norton, há uma implacável hostilidade. Apesar da força com que deseja camuflar essa intenção hostil, as desculpas soam como um argumento de retirada estratégica.
— Crewhhissihshshsp:
“Você nefasto. Mal invade e começa a mentir. Todo pensamento seu está contaminado com a praga da mentira. É compulsivo. Seu Deus ensinou isso? Não, vocês sabem, mas agem como se Ele devesse subordinar-se à sua cultura, não vice-versa. Acreditam que a Terra será dominada por uma raça, um povo escolhido? Seus profetas neolíticos, diziam, traduzindo Deus: “Minha casa é a casa de oração de todos os povos”. Suas orações deveriam ser os mantras de todos os povos. Não sua hostilidade, sua vontade de domínio, seu medo, seu ódio, sua culpa, sua ganância. Globalizaram tudo que é ordinário, exceto as orações. Vocês estão desespiritualizados. Secos. Satanizados.”
Os cinco da Expedição Norton captam telepaticamente as mensagens através de sons fricativos, alveolares, nasais, de breve duração. Longe estão de corresponderem a extensão das respostas no interior de suas mentes. As respostas se traduzem imediatamente após o zunido. Os interlocutores das crianças ampliam o diálogo, interferem neles para que os outros tenham tempo hábil de replicar melhor. Tentam tudo que é truque, mas não há posicionamento adequado neste contexto.
— Por que querem respostas ? Ou sugerem respostas ? Vassari, mais que irritado, mostra-se inquieto.
— Pega leve... A opinião de Rossi, uma tentativa de firmar os passos.
— A raça humana atual é descendência de ramificações diversas em vários continentes da Terra. A cultura do supostamente mais esperto, do mais armado, sempre domina as culturas pacíficas, com menos recursos. É a lei, nem sempre aceita por todos. Tauil disse mais, tranquila e afirmativa:
— Os que são contra as idéias dos que as impõem pela força, são ditos intelectualmente equivocados, neobobos. A solidariedade está fora de moda, quem não simpatizar com a política das patotas é logo eleito inimigo, feroz e nocivo ao mal-estar comum. É desta forma que a cultura humana funciona. Chamam isso de democracia.
— Zonhshshshhshshtsky. O zumbido se traduz para eles desta forma:
“Espiritualidade é simples: Não teme a peste que anda na escuridão, nem os que caem à direita ou à esquerda. Somente com teus olhos olharás e verás, sem desprezo, a recompensa dos ímpios.”
— Gronsnnshihisshshi:
“Praga alguma chegará a tua tenda. Não permitirei que tropeces. Pisarás o leão e o áspide, calcarás os pés neles. E eu o livrarei da angústia, lhe mostrarei a minha salvação. Não confiam nestas promessas ?”
Como não há resposta, as crianças persistem: Whellphhswhisssiss:
“Não vêem que sua cultura atual apenas continua o trabalho daquele primeiro capitalista de “2001”, que elege o osso enquanto arma mortífera? Não vêem que toda sua ciência prossegue fazendo a mesma coisa ? A cultura do saque, da matança, da corrupção, da perversidade é preferencial. O que não faz sentido é que ainda hoje, sua cultura seja tão semelhante a padrões que estariam melhor situados enquanto personagens da história emocional dos trogloditas, seus avós de raça.”
— São 4000 anos do surgimento da racionalidade e 40 milênios de selvajaria e compulsão cromagnon. A civilização sapiens/demens precisa de mais tempo. Nossa ciência e tecnologia começou a pouco mais de 4 séculos. Tauil transmite compreensão e humildade: a argumentação soa pertinente.
— Hensnsnisisinsnsh:
“Vocês não têm uma civilização. O surgimento da escrita não significa a aurora da racionalidade. Como pode haver civilização sem Ética, se sua cultura é excludente ? Não há Ética em suas relações. Os bucaneiros infestam as administrações, dividem entre si o espólio das verbas sociais. Reforçam o poder pirata das oligarquias. Suas leis os protegem, seus exemplos servem para disseminar a peste emocional e moral que se estabeleceu. A miséria mental de sua raça, é metáfora de todas as outras misérias. O progresso de sua tecnologia apenas aperfeiçoa as formas de domínio cromagnon.”
— É o melhor que podemos fazer. A voz de Rossi soa como uma desculpa esfarrapada. Ele sabe que a grande maioria das pessoas quer que as coisas aconteçam diferentes.
Norton, Hermann e Vassari estão bloqueados. Algo errado está acontecendo com eles. Transpiram demais, mostram-se excessivamente tencionados. Fortes, treinados, robustos, guerreiros, por que tão trêmulos e transtornados? É a pergunta que se fazem Tauil e Rossi. Outro zunido reverbera no interior de suas mentes, logo se traduzindo em sentido.
— Yinnnsssssshinnnng:
“Vocês não sabem? Eles estão aqui para invadir, agredir e dominar pela força e pelo terror. A velha tática do colonialismo bem intencionado: Levam a religião, Deus e sua cultura, e nenhuma Ética para gerir pensamentos, palavras e ações. Ninguém, nem o que vocês chamam Deus, consegue gerir harmoniosamente uma mitologia humana sem Ética. Sem um fim trágico.”
A receptividade mental dessas frases foi diversa na mente de Norton, Vassari e Hermann, diversa da acolhida psi nas mentes de Tauil e Rossi. Os três mercenários parecem demasiados concentrados. Aos corpos contraídos faltam os cinco sentidos. Uma leve linha de sangue goteja do nariz de Norton e no de seus asseclas. Os olhos de Vassari passam a impressão de que podem explodir. Dos ouvidos de Hermann, filetes de sangue pingam da pele da orelha, na camiseta ocre.
Em resposta às indagações silenciosas da fotógrafa e do repórter, as mensagens telepáticas das crianças prosseguem, desta vez sem nenhuma sonoridade:
“Por favor, queiram desculpar o zumbido que precedeu nossa réplica. Abrimos um nicho receptor em suas mentes. Está tudo bem. A pressão arterial dos seus acompanhantes caiu. Estão sob colapso circulatório e isquemia cerebral. Nada grave, apenas uma síncope passageira. Nada mortal.”
As crianças dirigem-se apenas ao casal Tauil e Norton:
"Fiquem tranquilos: vocês não vão precisar deles para voltar à superfície. Eles estarão bem. Os maus por si se destroem, ah, este antigo ditado talvez funcione para eles.”
— Por que acontece com eles, apenas ? Não estamos sob as mesmas influências? Ambos ficam surpresos: Rossi porque, antes mesmo de abrir a boca para fazer a pergunta, já estava a ouvir a resposta. Tauil porque captou telepaticamente Rossi:
“Eles vieram como batedores de uma operação militar ultra-secreta, de destruição. Vocês seriam sacrificados em prol de uma estratégia sensacionalista de divulgação da Expedição Norton. Publicariam em livro uma história fantasiosa, inventada para justificar o desaparecimento da fotógrafa e do jornalista.”
“Um artefato nuclear estaria aqui duas horas e meia após comunicarem ao QG as coordenadas de acesso a este lugar. Um comando paramilitar altamente qualificado, autodenominado ironicamente A Última pá de cal sobre o Terceiro Reich, faria a instalação e a detonação, por controle remoto, de um potente artefato nuclear. Seus corpos estariam a poucos metros da explosão.”
— Mas por quê ? Qual a finalidade ? Fazer da Expedição Norton um bestseller literário ? Admira-se Tauil. Uma bomba atômica...?
“Soterrar todas as passagens, impedir o trânsito e a acessibilidade. Tornar este sítio inacessível devido aos altos índices de radioatividade. Promover a contaminação ambiental por radiação induzida. Criar condições ecológicas nocivas para uma posterior política de retirada dos nativos do Parque do Xingu, alegando que, nos conjuntos habitacionais, construídos nas periferias das cidades vizinhas, eles estariam seguros e protegidos da contaminação radioativa."
Sei, o lugar, rico em minérios, estaria posteriormente liberado para a exploração de companhias mineradoras multinacionais. A perplexidade de Rossi mistura-se com uma certa e incontida indignação.
“A ocupação internacional da Amazônia por um comitê de defesa do ecossistema amazônico, supostamente administrado por uma comissão de preservação ambiental da ONU, gerida pelo Grupo dos Oito, precederia, por duas décadas, os trâmites jurídicos de exploração mineral, compensando em parte, os investimentos fracassados dessas companhias em projetos da NASA, originalmente destinados à exploração mineral da Lua.”
— Isto não soa fantasioso ? Exploração mineral lunar... A NASA está colonizando Marte. A incredulidade do jornalista, que se tinha por bem informado, transparece na limitada compreensão de segmentos de interesses comerciais setorizados, característicos da globalização excludente da nova ordem mundial.
“A posse de recursos minerais são a evidência do progresso deletério da Terra. Por que não há disputas jurídicas entre as grandes empresas de mineração dos EUA, pelo privilégio de serem pioneiras na exploração mineral lunar? Simplesmente porque ela está ocupada por uma raça alienígena que explora uma outra modalidade de riqueza mineral do satélite de vocês. E não querem interferências. Eles têm na Lua, uma central de monitorização da energia dos arquétipos de sua raça, tecnologia complementar à estação interdimensional que os índios chamam: "Lua invisível, do outro lado da Terra.”
Tauil não contém a perplexidade:
— Vocês estão dizendo, que os americanos desistiram da Lua por sugestão de alienígenas que a ocupam atualmente, por suposto direito de colonização? Chegaram primeiro, e se fizeram entender que não querem humanos por lá?
“As estruturas recentemente fotografadas na superfície lunar, nada têm com exploração mineral. Fazem parte de um complexo sistema de comando, comunicação e controle das energias latentes de sua raça. Essas instalações são remanescentes da tecnologia dos “Muito Antigos”, uma raça de vampiros anímicos, que se alimentam de compostos químicos etéricos do plasma sanguíneo, produzidos pelos medos, traumas, frustrações, ansiedades, psicopatologias da agressividade dos descendentes cromagnon.”
Tauil: E como é isso? Como funciona?
“Do outro lado da Terra, simetricamente oposto ao local onde está o satélite natural, com semelhante diâmetro lunar, há um depósito de paixões, de sensibilidades diferenciadas, de sentimentos, emoções, coragem, ânimo, arrebatamento, entusiasmo, veemência. Um almoxarifado de potencialidades psí: memórias emocionais. Conhecimentos sutis armazenados. Esses são os registros akásicos, a espiritualidade remanescente e atual da raça sapiens/demens sapiens: bilhões de faíscas quânticas a que chamam de almas.”
Tauil: Muita gente na superfície acredita que Shambalah, habitada pelos lemurianos, é habitat desses vampiros, mas vocês não parecem ser mais que crianças com a mente muito desenvolvida.
“Quando alguém nasce na Terra, nesse novo milênio, uma dessas faíscas quânticas, ou alma, passa a habitar em interação com o código genético do recém-nascido. Acontece que nesse depósito de faíscas quânticas, existem apenas espiritualidades degeneradas pela influência ancestral, e por uma cultura material de manipulação do mercado, de maneira a incentivar os instintos mais primitivos da libidomercadoria, da libido mais-valia, dos instintos mais primários. Anteriores à mais rudimentar cultura.”
Rossi: Por que essa Lua simétrica, esse arquivo anímico não é visível nem captado da Terra?
“Está em outra dimensão da matéria. Normalmente, quando alguém cumpre um período de aprendizado na Terra, ao findá-lo, deve seguir para outras moradas da família cósmica. O problema é que o desenvolvimento da espiritualidade anda tão fraco, que suas faíscas quânticas, suas almas, não conseguem propulsão suficiente para ir além das camadas mais superiores da atmosfera.”
“As faíscas não têm força para chegar ao espaço externo, sem gravidade, a partir do qual teriam condições de migrar, em poucos segundos, para outras moradas do Pai, para cumprirem os desdobramentos de seus karmas. Não mais conseguem, forças. O que vocês chamam de progresso, globalização, neo-neo-pós-liberalismo, esses clichês, não servem para nada, nem para camuflar um processo coletivo suicida de satanização e coisificação da vitalidade anímica de sua raça.”
“A alma, escravizada por essas demandas, se revolta. A cultura reproduz os modelos da compulsão cromagnon visualizados a todo instante, nos jornais, revistas, programas de rádio e tv. Deus foi substituído pela mercadoria onipotente, onipresente, onisciente. A civilização de vocês agencia a reciclagem tanatológica: o mercado, o consumo globalizado luciferinamente.”
Tauil e Rossi têm muitas perguntas, todas respondidas tão logo esboçadas. Surpresos por suas mentalidades racionais estarem aceitando toda essa argumentação sem rejeição evidente, como se ela se encaixasse em alguns nichos propícios de seus intelectos, e estivesse a preencher vácuos informativos, que agora servem de ponte para um novo nível perceptivo: como se um ciclo estivesse fechando-se, superando-se. Todas as antigas e inúteens indagações, diluídas. Sentem que a educação acadêmica abarrotou suas mentes de preconceitos culturais que não mais faz sentido.
“As pessoas não têm transcendência, perderam a liberdade, a vontade, o controle de sua alma pessoal e coletiva. Transformaram-se em engrenagens de engrenagens dos produtos que desejam possuir. O que deveria ser a alma ou a espiritualidade, ao abandonar o corpo, está depauperada da energia vital pertinente, incapaz de romper a barreira da atração gravitacional eletromagnética. Desta forma são atraídas para a estação orbital luciferina, para uma reciclagem sem transcendência, uma reciclagem do mau, administrado pelo anjo caído da Estrela da Manhã. A lua invisível é uma caixa de ressonância que captura facilmente as faíscas anímicas.”
“A alma do Homo sapiens/demens é facilmente aprisionada pela tecnologia de armazenamento das unidades quânticas polarizadas pela vontade de ter, possuir, consumir. As pessoas são usadas e reutilizadas como se fossem massa de manobra de Satã: vampiros de vampiros, antropófagos de antropófagos, lobisomens de lobisomens, mercadorias de mercadorias.”
“A forma encontrada pela infinita compaixão do Criador para acabar com o inferno dessa falsa defasagem, dessa lei do eterno retorno ao horror da coisificação cromagnon...Para que a dor, a frustração, a violência e a ansiedade não prossigam se reproduzindo, indiscriminada e inconscientemente... Visando libertar as almas do comando, comunicação e controle luciferinos nesse planeta... A forma mais adequada, sem maiores traumas, foi a disseminação da "amblose disforme". A raça humana não prosseguirá se reproduzindo para Satã. O “Reich dos Mil Anos” não terá continuidade.”
Tauil: Que acontecerá aos bilhões de almas que não terão mais corpos para a reencarnação? Ficarão por quanto tempo nesse depósito de faíscas quânticas?
“Satã, ser espiritual, precisa de corpos, ele só pode ser detido por um estágio superior de consciência que não mais pode ser conduzida ao homem. O ser humano se perdeu ao criar uma cultura da quantidade. Uma criatura escrava do inconsciente coletivo gerido pela globalização do consumo. Fragmenta e banaliza todos os dias, todas suas instâncias perceptivas. Lúcifer e seus anjos caídos são luz, espíritos, podem viajar a trezentos mil quilômetros por segundo e até muito mais rápido.”
“As faíscas quânticas viajam a velocidades, não raro maiores, que a da luz. A diferença está em que elas desconhecem as trilhas entre as estrelas. Podem ser rapidamente atraídas por um buraco negro, por forças eletromagnéticas e gravitacionais, com as quais a única interação possível é a dissolução tensorial. Estão indefesas face às armadilhas posicionadas no espaço infinito entre estrelas, pelos seres de luz que lhes fazem polaridade.”
Rossi: Ele estará livre para migrar e fazer mais vítimas em outros sistemas solares onde haja vida semelhante à da Terra?
“Sim e não. Lúcifer e seus aliados podem vencer distâncias imensas entre as galáxias, em pouco tempo. Os anjos crísticos que polarizam com ele, visam proteger o desenvolvimento espiritual de diferentes raças, habitantes de outros planetas, para que não aconteça com elas o que está acontecendo com a Terra. Posicionam armadilhas siderais, nas quais os seguidores de Lúcifer podem ficar aprisionados para sempre, ou, pelo menos, por um continuum espaçotempo incalculavelmente longo.”
“Este planeta em pouco mais de um século, não terá mais corpos, devido aos efeitos da "amblose disforme". As faíscas quânticas luciferinas, sintonizadas por Satã, não mais terão como se reencarnarem. Os corpos que dariam continuidade ao projeto nazi do Reich dos Mil Anos, não terão como nascer.
Ao empreender uma nova viagem em busca de corpos prontos a serem preenchidos e dominados pelas falanges luciferinas, Lúcifer, seus aliados, sabem que o Cosmo, nestas circunstâncias, pode ser um lugar terrivelmente perigoso, para uma migração em busca de outros planetas que possam acolhê-los. Mesmo para ele, tal busca pode ser fatal.”
As dezenas de crianças, após uma saudação, começam a desaparecer num piscar de olhos. Exceto duas delas, que pegam, pelas mãos, a fotógrafa e o jornalista e conduzem-nos a um nicho no qual estão quatro assentos. Posicionam-se confortavelmente neles.
Acontece tão rápido que só agora Tauil e Rossi lembram que Norton, Hermann e Vassari ficaram para trás. Estejam tranquilos vocês terão notícias deles. Mal ressoam as frases em suas mentes, ouve-se um som grave sutil, gradativamente penetrante, como se fosse o sibilar de alguma lendária e formidável anaconda. Sentem sobre si um peso esmagador. Perdem os sentidos.
A OUTRA
MESMA
TERRA
Tauil e Rossi despertam numa cama de hotel na cidade de Barra do Garça, próxima à Serra do Roncador às margens do rio Araguaia, único lugar do país onde existe um OVNIporto (aeroporto para objetos voadores não identificados).
Ao abrir os olhos Tauil vê apenas rostos idosos, muitos deles, mulheres e homens mais ou menos da mesma idade, entre setenta e oitenta anos, alguns curiosamente debruçados sobre ela. Não sabe explicar, mas uma sensação inusitada de horror cresce de tal modo dentro dela que a única coisa a fazer é berrar. Chorou alto, aos berros, de susto, de medo. A sensação arrepiante de um padecimento atroz.
Não sabe explicar racionalmente porque está tão horrorizada. Como se essas criaturas idosas fossem prenúncios de uma coisa que ela temia acontecer. E aconteceu. Como se fossem extraterrestres. Ela não conseguia uma identidade, não conseguia vê-los como pessoas do mesmo mundo, com um futuro semelhante. Era simplesmente impensável fazer parte do fim do mundo. De um novo começo ? Deus, não pode ter acontecido mesmo.
Acalma-se logo depois, ao vê-los sorridentes e amistosos. Dentre eles vê Rossi aproximar-se, braços estendidos que a ajudam a levantar-se.
Fica sabendo que está havendo uma romaria de pessoas da região que vieram conhecê-los, vê-los, apalpá-los. Querem saber como chegaram até aqui. Seriam habitantes de cidades subterrâneas, qual seu planeta de origem ? Como podem ser tão jovens ? Os estranhamentos eram mútuos. A reciprocidade da perplexidade.
Os idosos dizem que Tauil e Rossi dormiram 72 horas, que foram trazidos ao hotel por monges do povo dos “Muito Antigos”. Pouco depois de desembarcarem-nos, sumiram em direção às estrelas num globo de doze metros de diâmetro por uns cinco de altura. Uma senhora idosa, sorridente, elogia o apetite de Rossi, uma hora depois de desperto: “Comum, numa pessoa que há muitos dias não vê alimentos. A impressão que passou fome a maior parte da vida”.
As entranhas de Tauil roncaram alto: risadas gerais devido ao fenômeno denominado por Jung de sincronicidade. Aos poucos Tauil e Rossi realimentam o corpo e a memória. Fazem longos passeios bucólicos. Descobrem a surpreendente beleza natural dessa região mágica. Suas mochilas estão intactas, mas a máquina fotográfica de Tauil é, apenas e suficientemente, o olhar.
Os efeitos da "amblose disforme" foram devastadores. A Terra se transformou num campo geriátrico. A fotógrafa e o jornalista, uma curiosidade por onde passam. Uma espécie de misteriosos últimos habitantes do planeta.
Chamam-no “casal século XXII”, meado do qual, não haverá outros sobreviventes humanos na Terra, senão eles, se estiverem vivos. Tauil aparenta 46 anos e Rossi 55. Estavam com 34 e 43 respectivamente, quando participaram da Expedição Norton. O paradoxo de tempo, observado por pessoas que viajaram a velocidade da luz, presente neles. Hibernaram, talvez, uns 90 anos, no tempo da Terra, em algum engenho estelar, viajando à velocidade da luz. A data, num calendário artesanal indica outubro/2125. A Expedição Norton aconteceu em novembro de 2035.
Em quatro ou cinco décadas poderão dizer ironicamente, “enfim sós”, como um estranho casal de Adão e Eva. Não há na Terra ninguém tão jovem. As últimas crianças nascidas pós "amblose disforme", contam entre 75 e 90 anos, as que sobreviveram. A qualidade de vida melhorou. No hotelzinho de Barra do Garça, os idosos avaliaram a idade deles entre trinta e quarenta anos. Na realidade, pelo tempo normal da Terra, a idade aproximava-se de um e meio século, se contado o período de hibernação.
O que teria acontecido ao planeta neste intervalo de tempo, de 2035 a 2125, no qual, supostamente, estiveram hibernando numa nave estelar ? Por nove décadas estiveram fora ? As histórias que ouviram dos sobreviventes, dizem que muita coisa mudou para melhor: Os programas tvvisivos que costumavam infantilizar a mentalidade das crianças, jovens e adultos, se especializaram em educá-los para a nova realidade de que não teriam descendentes.
Precisavam, eles mesmos, manter a qualidade de suas vidas. Não terão quem possa fazer as coisas por eles.
As usinas atômicas foram todas desativadas. Os fantásticos e dementes gastos com armamentos, foram redirecionados em investimentos em educação para a sobrevivência, em saúde para a nova existência. Os últimos habitantes da Terra, segundo a ONU, mereciam toda a consideração e respeito.
As grandes companhias de petróleo mantiveram as refinarias e os postos de distribuição funcionando até 2090, quando, até os mais fanáticos usuários de automóveis, começaram a ficar em suas casas, sítios e apartamentos, e os serviços de trânsito foram desativados. As taxas de criminalidade caíram drasticamente. Uma educação para a solidariedade aumentou a qualidade de vida das comunidades rurais e urbanas. Nesse período o turismo interno e o externo, aumentaram incrivelmente.
Quando os acidentes aéreos aumentaram em quantidade, os vôos “charter” foram proibidos pela ONU. Mantiveram apenas as pequenas companhias de aviação, com pilotos e passageiros nonagenários que têm seus campos de pouso particulares. As aeronaves frequentemente dirigidas por pilotos automáticos. É incrível ver como tudo se manteve em funcionamento até há duas décadas, quando a idade começou a pesar mais do que a manutenção razoável das antigas rotinas.
Os serviços de saúde e os securitários começaram a atender surpreendentemente bem. Pessoas que tinham uma enorme vocação frustrada para ajudar, sem condições de estudar, com a mudança dos padrões de ensino da profissão médica, formaram-se em medicina. Nunca se viu tantos e tão bons prestadores de serviços médicos. Os poderes públicos mantiveram os privilégios.
Os políticos de Brasília se transformaram em “príncipes do Congresso”, o presidente, numa espécie de “rei da democracia geriátrica”, gerindo o país ainda sob a égide da doença social da corrupção. Até que eles, os policiais, as autoridades das forças armadas e os marginais geriátricos remanescentes, perderam o gosto compulsivo pela dominação e a soberania da violência.
Quem está vivo vive melhor. Educados para uma nova realidade, insuflados por uma propaganda motivada para manter a dignidade da raça, em seus últimos momentos, não faltaram voluntários da última geração do planeta, para assistir, velar, enterrar ou cremar os mortos. Dir-se-ia que a natureza humana, numa situação limite, melhora os padrões de convivência. Ainda que apenas aparentemente.
Os filmes do canal fulltime de tv ainda podem ser vistos, não despertam, é claro, a curiosidade de antigamente. Não são mais tão interessantes, mas ajudam os tvespectadores a compreender, entre outras coisas, o que a realidade do momento lhes reserva para o futuro próximo. Ninguém parece ter interesse nisso. No futuro. Desde que não haverá futuro.
Num de seus mais recentes filmes, ficou claro que, enquanto houver um ser humano vivo sobre a Terra, esse canal ao mesmo tempo fantasma e fantástico, estará no ar. Tauil e Rossi não mostraram zelo em observar o que poderia estar ocorrendo em termos de imagens na tvvirtual. Na época da Expedição Norton, excessiva curiosidade lhes causara, agora, parece-lhes indiferente. Ainda assim, as faíscas quânticas prosseguem alimentando o casal “virtual” de horrores tvvisivos.
Passaram-se sessenta dias até resolverem seguir rumo sudeste. Embarcações fluviais, carro e combustível não são problema. O índio Perimuricá, um pagé Kalapalo, os acompanha em direção às cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, e às montanhas das Minas Gerais. Um barco a vapor os conduz até Rondônia, onde conseguem uma camioneta cabine dupla, na qual se dirigem a Mato Grosso, Goiás, Brasília. Não é preciso roteiro turístico. As estradas estão quase desertas e evidentemente mal conservadas. Perimuricá ganhou a simpatia deles, porque está atento a tudo, não sente necessidade de falar. Sua voz é sua força interior.
Quando em São Paulo, pesquisam os jornais na biblioteca pública Mário de Andrade. A curiosidade para saber como as coisas aconteceram nesse tempo em que estiveram fora, é grande. A Biblioteca mantém aberta suas dependências aos raros frequentadores, no bairro do Anhangabaú, que em tupiguarani significa “rio dos malefícios do diabo”.
Depararam-se com artigos de jornais e revistas, escritos por especialistas em busca de uma explicação para a teoria das “faíscas quânticas”, e da “sintonia quântica pela tv”, uma novidade surgida nos meios científicos, na época da disseminação da "amblose disforme". Estas faíscas, polarizadas pela intencionalidade de alojarem-se em seres humanos, penetravam nas células das vítimas, e provocavam uma exacerbação energética tipo singularidade isolada. Elas, algumas pessoas, pegavam fogo, fenômeno conhecido por combustão humana espontânea.
Rossi está lendo um artigo do Jornal do Brasil. O cronista, um astrônomo com PhD em Harvard afirma que a Terra se transformou numa região exposta às singularidades extremas. Lugar onde as leis físicas conhecidas no estudo das regiões do continuum espaço-tempo entraram em colapso. E até mesmo as equações da Matemática e da Física perderam seus significados.
Um dos artigos lidos na biblioteca tentava explicar o antigo surto de Combustão Humana Espontânea, dizia: “Inexiste maneira satisfatória de interpretar e tornar inteligível essa teoria com simplicidade..." O artigo era assinado por uma professora PhD em Física Teórica da Universidade Federal do Piauí, Gabriela Luar:... "Desde que os conceitos que a envolvem são extremamente complexos. O corpo transforma-se em uma espécie de campo gravitacional e eletromagnético, ao criar uma ponte para a invasão de partículas elementares altamente radioativas, que, em segundos, o reduz a cinzas. A velocidade de evasão das faíscas quânticas torna-se, neste contexto, nula.”
Outro artigo, escrito por professor do Instituto de Física da USP, dizia: “A invasão de um corpo por essas faíscas quânticas, cria nele um campo magnético inflacionado por partículas elementares conhecidas como psi e J, capazes de atrair para a vítima milhões dessas faíscas simultaneamente, produzindo um efeito raios X de alta potência com resultados devastadores sobre o corpo. Ninguém no planeta poderia explicar esse fenômeno, exceto se pudesse criar um grupo de equações finais sobre a própria matéria.”
Ao saírem da Biblioteca Mário de Andrade, ex-centrão da capital paulista, Tauil imagina a possibilidade da filha caçula ainda estar viva, talvez morando no mesmo lugar de antigamente. Não, não, assusta-se com a possibilidade. Minha filha Ariadne estaria com 97 anos. Quando saiu com a Expedição Norton, ela tinha sete aninhos. Poderia ter uma trineta.
A curiosidade muito mais forte que os argumentos em contrário. Uma ocasião única para viver um paradoxo cronológico entre ela, sua filha, mais velha que a própria mãe. Não houvesse ficado a viajar numa starnave, percorrendo espaços entrestrelas, inusitados, em estado de hibernação, onde o tempo leva muito mais tempo para passar, não estaria a vivenciar esta situação de paradoxo.
A filha, sim, Ariadne, deve ter crescido, casado, talvez até mudado de país. Vencem as motivações em contrário e se dirigem para a rua Jorge Chamas, próxima ao antigo Detran no Parque Ibirapuera. Uma curiosidade saudosista a impele verificar quem ainda estaria habitando a antiga residência, quando chamada a participar da Expedição Norton. Que aparência teria sua casa, hoje ? Existiria ainda ? Lembrará dos aspectos de outrora, da rua ? Manterá uma aparência reconhecível para quem esteve noventa primaveras ausente?
Ao chegar em local aproximado da antiga residência, agora com aspecto bem diferente de quando partiu para a aventura amazônica, perde qualquer esperança de encontrar uma reminiscência, uma longínqua saudade de certa criaturinha indecisa que um dia fôra sua filha. É como se estivesse fazendo um esforço para trazer à memória atual, uma lembrança perdida numa vida anterior. Nada, nada mesmo. Olhou de perto as casas, os números, o nome da rua, as ruas adjacentes. Sim, seria numa dessas residências de aparência remodelada, reconstruídas, modernizadas, modificadas.
Entra no carro, liga o motor, disposta a circular em direção a outros sítios, quando Perimuricá a chama: “Aqui, venha vê, por favor, aqui”. Perimuricá nunca tinha falado tantas palavras de uma vez. Ela se aproxima para lê uma placa de bronze escondida entre as folhagens de um pequeno jardim na entrada de uma residência. Nela está gravado: Spa Dra. Ariadne Tauil. Geriatria. Fundação: Outubro de 2055. O coração simplesmente dispara. As faces avermelham-se. O índio pergunta: “A senhora está bem ?”
Ela mal consegue responder: “Sim, sim, estou, estou sim, muito melhor agora”. Perguntas brotam de um estado de sensibilidade quase insuportável: Estaria viva, ou seria uma possível neta ? Filha de sua filha e muito mais velha do que ela. Absurdo. E essa tristeza indesejada, essa estranha ansiedade ? A clínica poderia nem pertencer mais à doutora.
Ariadne Tauil, poderia até já ter morrido. E todos os seus descendentes. A sensação de que ela também poderia morrer ao vê-se no espelho da relatividade, ao contemplar face a face a idade paradoxal de sua descendente: o contra-senso da situação de uma contradição logicamente insolúvel: a outra que não poderia existir nessa condição paradoxal. De qualquer forma, precisa correr esse risco.
OS “PIG-SPAS”
VERSUS
OS “HOT-DOGS”
A impressão imediata de Tauil: o lugar estaria vazio. Talvez não funcione mais. Na desolada paisagem das ruas, o vento forte varre milhares de folhas outonais pelas calçadas. Arrasta-as por sobre o asfalto e à meia-altura. O índio olha para as nuvens e repete:
— Chover, vai chover, muita chuva, Rossi não vem? Tauil escreve um bilhete dirigido a Rossi, e cola o papel na parte interna do vidro da janela do lado esquerdo do carro. Ao apertar um botão, a grade externa começa a abrir, a ranger. E pára. Ela insiste, aciona outra vez o interruptor, a grade recomeça o range-range e estanca de vez, não sem antes permitir uma passagem de uns 45 centímetros de largura.
Uma câmara de vídeo é acionada por um operador interno numa mesa cheia de monitores. Não funciona. O indivíduo de cor, no controle interno dos monitores, vitupera:
— Caracas, que se passa? Por esse portão não vem ninguém há séculos. Ele bate nervosamente sobre os controles do monitor. Após algumas interferências no alinhamento vertical da imagem, fixa a figura de Tauil. A voz do interfone solicita que se dirijam a outra entrada, na outra rua, para nova identificação visual.
— Sim, posso ajudar? A expressão facial do homem ao vê-la, exibe uma surpresa horrorizada. Muito nervoso, ele quase não consegue articular as palavras: “Qqqqqqquê desssejaaam ? Mama África, exclama, estou vendo coisas. Aquele baseado... Aquele maldito baseado. Massssiis... Isto só pode ser alucinação. Qaaaqauem, quem é, o que quer, de onde vêm, quaaaauemm sãsahnão vocevocevocês ? Quem está fazendo essa maldita piada sem graça comigo ? O cara está confuso, os olhos passam a impressão de querer saltarem das órbitas. Nunca poderia acreditar na visão de uma mulher tão jovem. Então a coisa lá nos países baixos está dando certo.
O funcionário fica pensativo e, em segundos, parece voltar à realidade: “É... Pode ser isso, é sensacional: Um momemennto, só um momimomentozinho, por favor. A voz parece se enroscar, engasgar, tropeçar nas palavras.”
— “Take it easy”, não se assuste, fique calmo. Meu nome é Adriane, este é o senhor Perimuricá, do Xingu. Queremos fazer umas perguntas, saber as condições para internação, se estão aceitando novos clientes no spa. Quero dizer, hóspede. Podemos entrar, se não for incômodo?
— Nãnãnão seisesei aoaoao, auauau, meu deus do céu, qui é isso ? Não estou tão doidão assim. Momomentinhozinho, pur favor. Vai sair da sala, mas resolve parar, olha bruscamente para o monitor onde permanece a imagem de Adriane: Você não é alucinação não, tá certo? Você existe mesmo, hem? Não vá me fazer de bobo, não saia daí. Faça o favor, não desapareça. Auauauauau, meu Deus... O cara sai resmungando.
— Ele late, comenta num murmúrio e muito sério, Perimuricá.
— Sim... Êpa...Ôôô... Certo... Momento. Volta outra vez, como se certificando que Adriane não é mesmo nenhuma alucinação. Pespera, peraí, desessesculpem. A cara do homem desaparece do micro monitor de observação externa. Cinco minutos depois, que para Adriane parecem muitíssimo mais tempo, uma voz, algo autoritária, mas amigável, autoriza que entrem. Segue-se o ruído da fechadura eletrônica que abre a grade de entrada ao pátio interno. Logo depois, outra grade é aberta, finalmente a porta. O cara do monitor não tira os olhões de assombro maravilhado de cima de Tauil.
Ela e Perimuricá são conduzidos por uma enfermeira, através de um corredor ao lado de uma sala enorme, onde são visíveis as palavras em caixa alta: Fervet Opus. Algumas distintas senhoras e alguns senhores estão alojados em estofados estilo Luis XV, onde as pessoas, supostamente rejuvenescidas, fazem ginástica aeróbica, vestidas à caráter. Uma e outra dessas pessoas vêem Tauil. Estão extasiadas ao vê-la mais jovem do que qualquer uma delas.
Curiosos, abandonam por momentos os exercícios. Aproximam-se do vidro transparente a olhar Tauil com grande simpatia e estranheza. As fisionomias não esconndem uma curiosidade arrebatada. Nem vêem Perimuricá. Seus olhos são para Adriane, apenas. Ao desaparecer pelo corredor, ficam comentando entre si, “de qual spa geriátrico essa mulher deve ter vindo”?
— Bar-ba-ri-da-de. Certo, agora sei que existem milagres, exclama uma senhora boquiaberta, após contemplar Tauil.
— Isto sim é progresso em geriatria, exclama alguém.
— A pele dela é mais nova do que qualquer outra, incluindo a nossa, de clientes preferenciais deste spa. Extasia-se uma idosa. E este é o melhor spa do Brasil.
— Do planeta, com certeza.
— A Romênia está mesmo fazendo progressos, opina a lider do grupo.
Tauil e Perimuricá descem alguns degraus até um jardim de verão, através do qual entram numa porta aberta pela acompanhante que, sempre muito nervosa e solícita, convida:
— Por favor, sentem-se, fiquem à vontade. Na sala aconchegante há a presença de vários termos com chá preto, verde e camomila. Neles uma etiqueta indica: 4%, 6% e 11% plasma, respectivamente.
Perimuricá acha estranho um orifício no centro da circunferência na parte superior dos termos. Como pode sair chá por aí ? Pergunta-se. Olha em volta e não vê nenhum copinho, nem canudo. Adriane folheia uma das publicações científicas que estava sobre a mesa. Pára na página de um artigo que anuncia:
Perenidade: a realidade do sonho.
Dr. Klein Zadilett. PhD.
“O soro hepático produzido pela equipe da dra. Magali Ostrowsky, da Clínica Pensilvânia, na Romênia, um avanço na medicina geriátrica, não apenas rejuvenesce as células, as mantém rejuvenescidas por sessenta e cinco meses, bastando para isso que o processo de granulação que reveste a víscera glandular volumosa no hipocôndrio direito (com pequena parte do epigástrio e hipocôndrio esquerdo, em função de excreção da bílis, pela alta tempertura com que é megamagnetizada a produção de glicogênio [(C6H10O5)n], seja mantida através de pequenas doses de plasma, em bebidas absorventes (líquidas quentes), de preferência chás, que devem ser ingeridas a 90º centígrados, cinco vezes ao dia, com tratamento térmico especial, sem nenhum incômodo para os clientes. Siga as normas.”
Perimuricá vê Tauil concentrada na leitura. Os olhos movimentam-se intrigados. Levanta-se, pega um dos termos, aperta o botão na saliência superior onde se acha o orifício. Dali sai um pequeno globo com um líquido escuro envolto numa membrana transparente de fios verdes. A bolinha tá quente. Ele a joga de um lado para outro, da esquerda para a direita, talvez, quem sabe, esfrie um pouco. Da direita para a esquerda, pingue-pongue, a coisinha vai e volta entre as palmas das mãos.
Senta-se ao lado de Tauil. A petequinha verde ainda está muito quente. Com um estalo labial, a bolinha salta outra vez da boca para as mãos, onde permanece joguete no vai-e-vem, palma-a-palma e depois em direção à boca de Perimuricá. No joga-joga entremanoplas, o índio, ainda meio em dúvida, lança de novo a bolinha na boca, e fica a movimentá-la de um para outro lado das bochechas. Os lábios fechados, as laterais da face cheias de ar. Dos olhos arregalados saem lágrimas, a pele do rosto vermelha, parece que vai estourar. Ele sopra, sopra e sopra outra vez e outra mais. Resolve, afinal, mordê-la. Ahhhahhhah exclama, chamando a atenção dela:
— Chá ruim, muito quente, diz, enquanto cospe o invólucro para o lado, a carranca vermelha, quase a se engasgar, tenta parecer educado. Ajeita-se na poltrona. Os olhos ainda cheios de lagrimação. Enquanto se recupera, arfando ar pela boca entreaberta, puxa, de dentro dela, uns noventa centímetros de finos fios verdes, parece gaze, cor de abacate. Por mais que puxe, eles teimam em continuar saindo. Adriane bate-lhe nas costas, enquanto adverte, apreensiva:
— É um medicamento, Peri, eu não teria feito isto. Após alguns momentos ele faz sinal de que está tudo bem. Ela relaxa e prossegue lendo o artigo:
“Aos pacientes dos spas geriátricos associados ao método Ostrowsky, basta ingerir as doses diárias por três meses, associadas às aplicações complementares da hormonoterapia. Após a renovação do tratamento com seis novas aplicações do soro hepático, num período de dezoito dias, se faz necessária a permanência da ingestão do plasma, nas doses de sustentação, nas proporções acima descritas.”
“A geriatria, livre dos preconceitos dos organismos de repressão ao progresso da ciência, avançou mais nesta década, devido a contribuições científicas das equipes Ostrowsky, na Romênia, e Ariadne Tauil, no Brasil, do que em todo um século anterior de pesquisas.”
Enquanto Adriane prossegue lendo o artigo, Rossi, fascinado por uma nostalgia incontrolável, caminha pelos espaços abertos e desabitados. Ele entra num clube de aparência vazia. Está seduzido pelo mistério latente desses grandes espaços lúdicos. Vai penetrando corredores e salas, quando, surpresa, um golpe na cabeça. Cai de joelhos meio abalado. Do grupo de homens idosos, um deles diz: “Vamos matá-lo, é um deles”.
— Maldito “pig”.
Estão prontos a descer pedaços de cano e pau sobre a cabeça do jornalista, quando alguém diz:
— Esperem, os malditos, vejam a aparência dele, parece rejuvenescido. Os canalhas, o que estão fazendo para conseguir isso?
— É realmente impressionante!
— Cristo, que incrível, como pode ser possível ?
— Os malditos "spas" estão mesmo fazendo progressos.
— Não mata agora, vamos fazê-lo falar, sugere um dos agressores.
Arrastam-no até uma sala na qual muitos deles jogam xadrez, gamão, damas, sinuca, cartas, videogames, pôquer. Algumas senhoras em volta de uma mesa redonda acompanhadas de dois marmanjos lançam dardos num alvo fixo. Outras, como se disputassem espaço vital por conquista de terras, num jogo tipo “war-game”, ao vê-lo, param de jogar sobre a reprodução de um grande mapa-múndi iluminado sob folhas transparentes de vidro. Ao perceberem a aparência mais jovem de Rossi, todos ficam interessados, param os jogos e aproximam-se da máquina de fliperama onde o jornalista permanece amarrado. O pasmo geral:
— Danação, poderia ser meu neto.
— Se você tivesse um, Ramon, mas não tem, filho. Responde uma senhora, provocativa.
— Ele está envelhecendo às avessas?
— Mais uns anos, ele vai estar com aparência de rapazinho. A perplexa madame não esconde o pasmo, enquanto esbugalha os olhos com a face colada no rosto de Rossi.
— A bruxaria desses "spas"... Que estão fazendo com os "hots" para chegarem a isto ? Fala em tom crítico e raivoso um marmanjo gorducho com sotaque italiano, que atende pela alcunha de Rê.
— Fechem o ferimento na cabeça. Perdendo sangue deste jeito, não vai durar muito. A velha senhora Celina parece preocupada com a saúde dele.
Aplicam um analgésico que suprime a dor em segundos, costuram catorze pontos no couro cabeludo do jornalista. Cauterizam o ferimento com uma caneta laser portátil, e amarram-no, na mesa redonda, sobre o grande mapa-múndi, meio Oriente meio Ocidente. Os continentes brilham a partir da tinta fosforescente.
— Por que não o deixou sangrar e morrer? Comenta Pedro Gomes, com sotaque matuto que lembrou a Rossi a região do Vale do Paraíba.
— Vamos abrir ele do mesmo jeito, para ver o que está acontecendo nas entranhas desse pig. Devem de ter implantado algum chip no fígado dele.
— Ele vivo é mais divertido, justifica um senhor baixinho. Lembrem que os "hots" nas clínicas ficam vivos por anos, pedindo para morrer, sofrendo horrores, para que filhos da puta como este tenham as células renovadas, a aparência de uma vida quase juvenil.
Submerso na ironia raivosa dos octogenários, todos muito energizados para a idade, Rossi está convencido: dificilmente sairá vivo deste lugar. O idoso que parece ser o líder do grupo espeta seu abdômen com uma agulha longa, ao perceber que o “paciente” não demonstra sentir nada, diz:
— Agora vou abrir sua barriga, filho. Você entende, precisamos nos certificar se substituíram mesmo alguns de seus órgãos por chips ou coisa semelhante.
— Por favor, não faça isso. Não sou quem estão pensando. Sou um jornalista, terceira década, Expedição Norton. Lembram ? Expedição Norton.
— Se você não é um deles, como explica sua aparência ? O desafio é de uma senhora. Ela parece ansiosa para ver o que há dentro dele.
— Charles Brown vai apenas abri-lo, não vai doer nada, garoto. Vocês fazem coisas muito piores com os "hot-dogs" aprisionados.
— Não sei do que estão falando, "hot-dog" pra mim é salsicha em pão com mostarda e ketchup.
Após risadas gerais, Charles Brown comenta:
— O filho da puta ainda é cheio das gracinhas. Rossi não compreende porque tantos risos e algumas gargalhadas. Brown aproxima o bisturi da pele da barriga de Rossi, à altura do fígado, e começa a cortar. Desesperado ele berra:
— Expedição Norton, Norton. Expedição Norton lembram? Novembro de 2035. Não saiu nada sobre nosso desaparecimento, nos jornais tvvisivos ? Vocês devem ter ouvido de seus pais, devem ter lido na imprensa, foram feitos casos especiais, filmes ? Rossi prossegue a berrar:
Expedição Norton, por favor, Expedição Norton, 2035. Novembro de 2035. Lembrem, por favor, lembrem. Eu sou Rossi, o jornalista. Estou com minha companheira de Expedição. Ela está lá fora, Adriane, Adriane Tauil, a fotógrafa da expedição. Ela confirmará o que digo. Procurem-na. Ela está lá fora.
— Ah, há, há, ahah, hahah, hah, ah, hah. Que que é isso: Hi, hi, hi, huuuuááá... Quásquasquasquás: As gargalhadas soam de todas as bocas escancaradas, surpreendentemente cheias de dentes, se próteses ou naturais, não sabe. Ganhou algum tempo. Toda a gente está simplesmente se divertindo. A certeza de que faz longos e muitos anos que não têm nenhum motivo para sorrir. O efeito das risadas, contagiante. A princípio um pouco acabrunhado, ele começa a ri também. Não sabe ao certo de quê. Talvez da inexplicável situação limite.
A maneira como foi dito isto, a convicção, o desespero de Rossi, o nome Tauil, fez Charles Bronw parar o bisturi, e dizer:
— Ele é da equipe da médica, da pilantra assassina. Você disse que a filha dela está lá fora? Ahnnnannnn? Garoto, Tauil...
— Adriane. Alguém completou.
— Adriane Tauil. Vamos ver se compreendi o que está dizendo. Você fez parte dessa expedição, do ano 2035 (risos), onde está seu envelhecimento, garoto, hein ? Hein ? Fala esperteza. O tempo parou pra você ? Que gracinha, não tem ninguém gagá aqui, criança, apesar das idades. Quantos anos tem você, rapaz, hein ? Os risinhos abafados cedem às risadas abertas que se fazem ouvir outra vez.
— É uma longa história, se vocês me permitirem contar.
— Corta logo ele! Desafia um idoso de camiseta listrada. O cara está fazendo a sua cabeça Charles?
— Charles está de miolo mole. Acode, acode. Charles está de miolo mole. Um senhor magro repete a provocação verbal.
— Corta ele, que está esperando? Incita outro.
— Charles desmaia ao ver sangue, comenta um senhor baixinho, ironicamente.
— Passa o bisturi nesse filho da mãe, cretino, ou passa a bola pra outro. Não vai faltar quem queira cortá-lo.
Charles Brown rumina alguma coisa e desce a mão para ampliar o talho abdominal em Rossi, quando uma mulher comenta:
— O Expedito está trazendo uma coisa pra você.
Três membros do grupo, armados com revólveres e um fuzil metralhadora, entram na sala, bilhete em punho.
— Estava no carro estacionado em frente a clínica. Fala, enquanto entrega o papel.
— Bom, talvez o rapazinho aqui não tenha mentido quando falou da amiguinha Tauil. Charles Brown entrega o bilhete escrito por Adriane, ao "hot" que parece ser seu mais próximo assessor. Ele o repassa às demais pessoas. Alguém comenta:
— Parece que agora vamos ter que ouvir a história dele. Ouvem-se alguns protestos que fazem contraponto com algumas risadinhas.
— Ela está bem? Sinais de estresse e sono são evidentes. Uma mulher põe um comprimido na boca e o faz ingerir com um pouco de água. Em alguns minutos, dorme. A sala despovoa-se. Ficam poucas pessoas. Algumas dessas pessoas mostram sintomas do “mal de Parkinson”, ou uma variante dele. Numa das mesas alguns idosos começam a jogar gamão, outros, sinuca e xadrez.
Dos apartamentos de observação dos "hot-dogs", em prédios fora do perímetro de edifícios e residências ocupados pelos "pig-spas", o grupo de Charles Brown observa a movimentação dos vigilantes armados dos "pigs", sem notar nada de novo. Tudo que está fora do perímetro de segurança das bases militares armadas, é território livre dos "hot-dogs". Há quinze anos havia muitas batalhas, quando os "hots" eram caçados para as experiências de laboratório dos "pigs".
Quarenta minutos depois os batedores estão de volta ao clube. Uma senhora põe uma almofada sob a cabeça de Rossi. O grande salão volta, aos poucos a ficar povoado. Rossi desperta disposto, como se o comprimido ingerido contivesse substâncias sintetizadas de proteínas, vitaminas, sais minerais e carbohidratos, na medida certa para serem assimiladas enquanto energizante orgânico. Sente-se muito melhor. Agente de forças insuspeitas.
Pensou ter dormido pelo menos um dia, quando dormiu apenas quarenta e cinco minutos. O ambiente agora volta a ficar tumultuado. As pessoas vão chegando, a curiosidade e a expectativa aumentam.
— Conte a história, marmanjo. Desafia Charles Brown. Quem sabe você convença todos aqui que é mesmo alguém nascido no século XX. As risadas ainda se fazem ouvir quando Rossi lembra os casos de combustão humana espontânea. Fala sobre o Dossiê Jângal. Simplifica a narração, de modo que possa parecer, ao menos possível, inverossímil e fantástica.
A platéia ouve, medita, pergunta, dirime dúvidas. A história convence, apesar de absurda. A aparência conservada de quarentão, é a prova irrefutável de que está dizendo a verdade. Rossi insiste em ler o bilhete de Adriane. Uma empatia se faz presente. Os laços que unem Adriane e ele são fortes. Desamarram-no e entregam o bilhete.
— Preciso vê-la, falar com as pessoas do spa, saber para onde foi, se ainda estiver lá.
Todos se divertem facilmente com ele. As risadas se fazem ouvir fortes, outra vez.
— Por favor, alguém diga a ela que estou aqui. Risadinhas abafadas transformam-se em gargalhadas.
— Que coisa do que disse pode ser tão engraçado? Não sou humorista. Vocês riem fácil demais. Parece uma gangue de bufões.
Primeiro Charles Brown, depois outras pessoas ajudam Rossi a compreender as forças que regem o mundo pós-"amblose disforme". Explicam que ele está dividido entre duas facções que se combatem e odeiam: os "hot-dogs", da qual eles fazem parte, versus os "pig-spas", ou barões da vaidade.
Os primeiros são denominados cachorros porque eram pegos nas ruas com redes imobilizantes. Elas entravam pela cabeça, desciam até os calcanhares da vítima, onde uma fivela tolhia seus movimentos. Algo semelhante aos cães vadios de antigamente, pegos pelos homens das carrocinhas. Quentes, porque são mantidos vivos, a contragosto, em estufas à temperaturas entre 45º/55º centígrados, sem que sejam literalmente assados. A transpiração libera resinas que vão servir de matéria-prima para a produção de soro hepático de rejuvenescimento dos "pig-spas".
— Suor que serve de base para o soro? Mas que é isso? Rossi mostra-se incrédulo.
— Duas décadas depois dos últimos sobreviventes da "amblose disforme" terem nascido, as pessoas mais ricas do planeta investiram tudo nessas pesquisas no intuito de prolongarem suas vidas.
Começam a falar com Rossi amigavelmente. Compreenderam que a história dele, por mais absurda que pudesse parecer, tinha a evidência de seu corpo e de sua pele, mais conservada e jovem que a deles. Contra fatos e evidências não há argumentos pertinentes. Todos parecem querer explicar a Rossi o que está acontecendo. Explicar como o mundo girou no período em que permaneceu abduzido.
— Parte dos produtos e serviços ficaram obsoletos por falta de livre concorrência entre produtores de mercadorias. A preocupação com a vaidade dobrou, triplicou. A velhice era o único inimigo a vencer. Eles não se incomodavam mais em fazer lavagem cerebral de baixo nível nos “da poltrona” para mantê-los globalmente idiotizados. A idade provecta tornou-se a única preocupação dos ricos do mundo. Queriam manter-se o mais jovem possível, fosse como fosse. A velhice precisava ser vencida a qualquer preço. Os pigs investiram tudo nas empresas de pesquisa deste setor.
— Cultivaram um vírus DNA dentro do fígado, capaz de produzir infecções controladas. Ele mantém superativo o fígado do infectado por longo tempo. O órgão dos "hots" capturados, com o tratamento vai inchando, como o fígado dos gansos usados para fazer patê.
— A ação do vírus vai comprometendo aos poucos o órgão de produção do soro hepático. Em trinta dias ele expande a produção da matéria-prima da pesquisa. Para que isso aconteça, torna-se necessário abrir a parede abdominal dos "hot-dogs" capturados. As partes mais afetadas pelo vírus artificial são banhadas em soro glicosado para que resistam às condições adversas, sem necrose. A hidratação é feita a partir da associação de moléculas de água a uma espécie de alga de laboratório. Esta produz uma reação química que combate o núcleo celular onde se multiplicam os radicais livres, impedindo as células de envelhecer.
— Certos radicais livres com ação oxidante, como a hidroxila, estão envolvidos no aparecimento de doenças e nos processos degenerativos dos seres vivos.
— Uma vez instalada o que os "pig-spas" chamam de função orgânica reversa, há uma septicemia, infecção generalizada. O paciente cozido vivo, aos poucos produz o que eles chamam de soro hepático da longevidade: líquido com propriedades medicinais que reforça o combate aos fatores responsáveis pelo envelhecimento das células.
— A pesquisa trouxe para os "spas" os medicamentos, os exercícios, os chás que fazem o conteúdo celular do citoplasma e do núcleo das células, combater a ação degenerativa dos radicais livres.
— O slogan dos "pig-spas", Fervet Opus, indica que devem manter-se em atividade intensa. “O trabalho ferve”. Quanto mais transpiram, mais a ação do soro hepático produz melhores resultados, devido a ação da substância radical-alcalóide ativa produzida nos aquários das algas.
— Mas nenhum de vocês parece ter mais de setenta anos.
— Sim, a farmacologia e a medicina evoluíram rápido. Uma década após o advento da "amblose disforme", as escolas secundárias se transformaram também, em cursos sobre conceitos básicos e avançados de ecologia, farmacologia e medicina. As pessoas aprenderam a preservar melhor a saúde, e o meio ambiente.
— Os laboratórios produziram em grande quantidade e a preços acessíveis, as cápsulas de reforço. Você ingeriu uma, há sessenta minutos. Dormiu pouco mais de meia hora, a disposição física e mental se manterá por 72 horas, quando os efeitos químicos começam a diminuir.
— Os "spas" queriam mais. Desejavam criar o soro da longevidade, nada menos. Há duas décadas não precisam mais caçar "hot-dogs" pelas ruas. Eles os mantêm, aos milhares, em campos de concentração e enxovias. Dormem em beliches e a higiene é feita em banheiros coletivos.
— Como nos tempos do Terceiro Reich. Os "hot-dogs" são mantidos nos dormitórioscâmaras numa temperatura permanente, mínima, de 45º.
— É o “Reich dos Mil Anos” em andamento, comenta Rossi.
— Com o advento da "amblose disforme", a coisa toda da sobrevivência, a partir de agora, vai durar apenas mais duas ou, quando muito, três décadas, a opinião do idoso se complementa com a de outro:
— A Terra vai ficar livre, para sempre...Olhando para Rossi, concluíram que ele e Tauil poderiam, talvez, gerar uma criança e Charles Brown disse, desta vez sem muita convicção, como se traduzisse o desejo e as esperanças de todos na sala. Falou como se desejasse que realmente acontecesse a geração de uma criança pelo casal, mas continuou a frase que anteriormente havia começado, ao dizer sem nenhuma convicção, e até de modo envergonhado. . . Da praga Homo sapiens/demens/sapiens.
Tauil e Rossi se metamorfosearam, de repente, na mente daqueles seres desesperançados. Havia agora uma expectativa em todas aquelas criaturas: a de que eles pudessem promover a continuidade da raça humana no planeta, como se fossem um novo casal Adão & Eva.
— Cristo, e Adriane, se eles resolverem usar o fígado dela nessas experiências ? A voz de Rossi ecoou no sentimento religioso da raça que havia desaparecido há tempo.
Uma senhora que parecia ser a mulher de Charles Brown e ter influência decisiva sobre as decisões do grupo, falou com firmeza e convicção:
— Precisamos tirá-la da clínica. De que jeito? Ajudem, por favor.
— O fígado dela, alguém comenta, deve ser uma preciosidade rara para a produção do soro hepático. Acreditem, eles não vão perder tempo.