[Deslimites de Palavras]
[A uma leitora - Velhos textos inéditos]
Por que te escrevo? Por que sei que, de um modo ignorado por mim, minhas palavras aportam em teu mundo. Existimos num espaço onde nada tem consistência, nada existe de se pegar. E mais: não há nem sequer uma pálida sombra do que somos. Somos espectros numa região do espaço-tempo.
Mas ainda assim, eu fecho os olhos e te alucino — imagino-me falando aos teus ouvidos... Sei que me engano, tu não podes me ouvir, pois és tão-somente uma voz ao longe, umas letras, uns escritos — não tens existência real em meu mundo. És um perdedouro, és um deslimite, um lugar nenhum aonde só palavras chegam... e logo são tragadas.
O tempo... Os dias criam a nossa história, criam sim, mas devoram a ti, a mim, e a todas as coisas morrentes com nosso mundo de sonhos. Nós somos criaturas fantásticas viajando numa paisagem virtual que não pode ferir nossos olhos.
E eu sou aquele que nada quer saber de escritos, e tampouco dou valor a eles... verdade ou mentira?! Julga-me pelo que aparento, pelo que as minhas palavras te mentem, e não podes adivinhar. Mas eu te deixo pistas, deixo sinais da minha passagem. Decifrar signos... Eis uma tarefa: aprenda-a, e viverás mais e melhor!
Dei uma revirada ligeira nesse texto, sem esperança de nada, pois sei que a palavra só faz alimentar mais e mais dúvidas. Todo poema é errante, é andante. Mas tudo que escrevo, eu escrevo como se buscasse o poema impossível, aquele tão belo que nunca alguém escreveu — eu sei: isto é o que todos dizem; pois agora é a minha vez de exprimir essa ambição!
Sim, sou ambicioso... e se quiseres tomar parte nesta minha ânsia, podes consumir-me... Sou tão consumível quanto esta frase que acabas de ler... Ou, sou feito queijo, manteiga... pinga... sal. Afinal, os séculos são testemunhas do nosso desaparecimento: somos todos como a poeira, o estrume seco ao vento, as marcas dos piões das rodas do carro de bois no barro da passagem do corgo do Barreirão.
Sou sim, aquelas marcas esvaecentes na poeira que o circo mambembe deixou para trás enquanto saía da cidade onde o espetáculo, de tão gasto, fracassou. Sou a sujeira poeirenta dos restos do acampamento que os ciganos errantes deixaram para trás... Sou a fogueira extinta do seu último acampamento... Até amanhã, sou tudo isso! Depois... não sei! Acha-me nestes meus nadas que te ofereço, se é que podes...
Depois, serei o esquecimento em que se desfaz aquela tumba derrocada pelas formigas, num arraial perdido nas montanhas de Minas... Terei só a lua como consolo inútil e frio, uma pátina macabra sobre uma lápide rota.
Em breve serei como aquela tumba derrancada e esquecida no cemitério do Campo Redondo–MG. Fundamentalmente, eu sou de lá... Eu não vim, mas venho vindo de lá por todos os dias, todas as horas, todos os minutos de minha vida, desde que nasci! Eu não vim da minha terra — não: eu sou gerúndio, eu venho me desfiando, venho me desfiapando, sou espiga madura que vem se desgranando sobre a terra!
Teria de deixar os meus dedos correrem soltos para te dizer o que penso destes meus rabiscos, mas não vale a pena, já que tudo é um risco no ar, na água, no éter!
Sou feito criança, já estou noutra paisagem enquanto tem gente chorando naquela que apenas deixei Só fica para trás o meu cheiro misturado à poeira: serve para criar a sensação de distância... e nada mais.
[Penas do Desterro, 20 de junho de 2006]