Devaneio
Do Capítulo dos Sonhos.
Cinco e trinta da manhã, despertou com o chamado suave de uma voz feminina, a voz mais bonita que conhecia.
Tomou um rápido banho frio, ouriçou os cabelos negros e curtos, fixou os olhos negros em um pedaço de espelho... sorriu
e
definiu para si, que aquele seria um belo dia.
Vestiu sua roupa predileta, bermuda jeans, camiseta surrada do colégio, tênis preto...
tomou café que a mãe havia preparado a luz de uma vela...
mochila nas costas... peso fora do comum... livro de matemática que ela odiava, o de português – todo marcado e bem cuidado porque amava...
um caderno de poemas com versos escritos também pelos amigos, um livro de literatura que lia concentrada na volta dentro do ônibus
e
por fim, um coração forrado de expectativas... iria ao trabalho, tinha dezesseis anos.
A rua ainda estava escura, sem casaco sentia o frio do final da madrugada, tudo lhe dava prazer... no ônibus só adultos, olhos nas pernas desnudas não cochilava...
o pensamento almejava que as horas passassem logo, que iria ao
colégio, seu recanto, apesar das baixas notas de matemática...
lá estavam os amigos e o seu mundo... mas antes os trabalhos...
Na rua, ainda escura e longe, a olhar pela vestimenta e pelo cabelo, que parecia um menino...
mas, as curvas femininas subtraem a dúvida.
Chegando ao trabalho, o cheiro gostoso de pão saindo do forno – a manteiga chega a derreter – leite quentinho... colegas ao redor... era a mais jovem... abrem-se as portas...
e
cinco... oito...quatro... dois e em um ritmo frenético – mentalizava a música do Gun's e o trabalho vai sendo mecanicamente realizado...
repentino e cansativo para uma mente que deseja pensar e debater a queda do Muro de Berlim... na aula de história
terminar a leitura de Herzer
e
respirar o ar da rua,
mas... por tudo isso, durante o trabalho não sorri
a mente vai a lugares onde gostaria de estar...
o corpo trabalha e repete...
e
a mente divaga...
o corpo cativo em espaço limitado... ora quente ora frio, ambiente pequeno forno e freezer fazem a temperatura ambiente... o sol lá fora ferve...
reclamações, broncas... o tempo... e enfim... meio dia...
educação física termina e as amigas na volta passam para dizer um olá...
naquele mês ela não teria aquela alegria, por isso mesmo pouco importava o resultado do jogo.
Meio dia e quarenta,
liberdade, casa da avó, mochila nas costas, faz o caminho que percorrera pela manhã... vinte minutos de caminhada,
sol, cansaço, frustração – e o resultado do Handebol será que as meninas perderam?
...enfim banho, almoço rápido, caminho de volta... vinte minutos... colégio, amigos, cadernos... caligrafia bonita e o prazer da escrita...
história...
Berlim – realidade – literatura e no intervalo Legião...
As vezes tirava um cochilo na biblioteca, o corpo pedia quando o trabalho massacrava o corpo atlético do esporte, porém a menina se cansava...
entrava na biblioteca silenciosa... escolhia uma mesa individual, escolhia um livro... abria e de cabeça baixa,
dormia...
em último caso, pedia para as amigas que a acordassem...
naquele dia dormiu quase o horário inteiro... as amigas não a chamaram.
De volta a sala...
Broncas...
Se expressão numérica era pra ela coisa difícil,
ficou pior, teve vontade de ir embora...
...rotina quebrada...
apatia... solidão...
e
o flautista a chama...
matemática não prestava, escrevia para não enlouquecer, lia para se convencer, solidão para refletir...
Em um final de tarde, observou um rapaz esperando a namorada em um ponto de ônibus, noutro dia, era a namorada quem estava lá...
em outro dia ele no ônibus...
sentado ao lado... a noite na academia entre amigos dela,
no mesmo colégio...
nos seus sonhos,
no seu caderno de poemas...
no barzinho... na rua...
na sua boca,
no seu coração...
foram-se os velhos amores.
Ele, em ouro na mão esquerda...
foram-se as dores...
...modificação...
Quando ele chegou...
resolveu aprender matemática... trocou bermudas por saias,
tênis por sandálias...
penteou os cabelos...
escreveu muito mais... leu muito mais,
sorriu muito mais... era seu instante de
Amor...
a vida floriu
e
ela se enfeitou...
sala de aula virou ofício
e
... no papel
o tempo para!
... abriu os olhos...
... o velho rádio ligado...
Stairway to Heaven...
voltou a dormir,
vento frio...
Brasília...
é
novembro de 1989.
Brasília - DF, 2006.
Do imaginário de quem observou a vida.