Casarão das múmias, não! Casarão dos tesouros da alma.

Vou te presentear com as lembranças de pessoas que passaram por mim. Guardei por algum tempo, mas... o tempo é correnteza sem volta; com suas águas vai fazendo desaparecer ou modificando tudo que encontra: Cores, cheiros, sensações, palavras...melhor escrevê-las enquanto consigo mantê-las guardadas, carimbadas, sentidas nesse lugar que os letrados chamam de cérebro; para mim,dei-lhe outro nome, mais poético, mais sensível: Tesouro da alma.

Escreva, por favor, pois em mim falta o talento de expressar no texto a poesia da vida, fazendo as palavras adentrar em locais fechados, escondidos, mascarados; trazendo à tona lembranças de momentos que não voltam mais. Não retarde colocar no papel àquilo que eles clamam, porque os ventos do tempo são implacáveis, e para muitos já não resta muito tempo.

Quem são eles? Não sabes? Quero te contar um pouco dos momentos que tive o prazer de vivenciar naquele lugar. Olhando para ‘eles’, percebi como eram tremendamente pesadas as palavras que estavam associadas aos que se viam obrigados ou necessitavam de ali habitar. Primeiro choque: o nome do casarão. Quando pedia informação disseram-me: Ah, a senhora está procurando é o Casarão das Múmias. Nossa!!! Pensei com meus botões, parece filme de terror. E já estou entrando nele.

Conseguindo chegar lá, vi pessoas encarquilhadas, esquecidas num casarão que também parecia perdido no tempo. Decidi conhecer suas histórias. Afinal, todo mundo tem uma história. Ou não tem? Tinha certeza de que ninguém que ali estava morando havia nascido enrugado, entortado, usando dentadura postiça, bengala... Elas não haviam nascidas desbotadas, manchadas, perebentas, ressecadas... Nenhuma delas quando começaram a andar, sabendo discernir a mão direita da esquerda, andaram fora do eixo, em câmara lenta, olhando para o nada, dizendo coisa sem nexo... Viviam como se estivessem em outra dimensão. Viviam? Sei lá! Ou apenas estavam fazendo birra com a figura lendária que tem por vestes uma longa túnica preta e por ferramenta uma foice?

Percebi que tinham histórias. Pude ouvir aos poucos: cada um tinha seu ritmo, um cansaço, uma birra, uma disposição... Vi álbuns com belas imagens que revelavam momentos que o tempo levou. Corpos perfeitos, sorrisos de creme dental, cabelos lisos ou caracolados de cores fortes e brilhantes. Vi fotos onde o números de pessoas que se espremiam para saírem no enquadramento do fotógrafo... Fotos que marcavam momentos de encanto, encontro, descontração, comemoração... mas que ficaram apenas num pedaço de papel encardido, manchado, desbotado... invocado pelas lembranças. Vi crianças sentadas em escadarias, ou abraçadas aos pais numa pose que parecia expressar amor eterno. Vi olhares derramados para os frutos da nova geração que surgia... Orgulho de um edifício em construção. Vi o que imagens, cartas amareladas, machadas e amassadas não conseguiram passar. Vi nos silêncios, nos olhos secos, nas lágrimas derramadas o que nas palavras gaguejadas não consegui captar.

Apelidados de múmias, esquecidos pelos mais moços, jogados como coisa... Alguns tem esperança de um dia reverem suas sementes, almejam por um abraço, um carinho, um convite para passear com os seus. Outros... Criam um mundo fantasioso, usando esse escapismo para burlar a solidão. Alguns resignados agarram-se a seus ‘tesouros’ e ali se refugiam nas lembranças de um tempo que lhes escapa. Tesouro ( chapéus, convite, um carnê, umas cartas e livros velhos, roupas, botões, bibelôs,etc.). Uns, recolhem-se no silêncio. Expressam sua insatisfação ou conformismo (será que realmente alguém consegue se conformar com isso?) através do mutismo esperando apenas a hora de sair do casarão para outra vida. Pior do que essa não pode ser. Na outra, sempre se espera que as lembranças não venham ser instrumento de perturbação. Outros... bem poucos... Aceitam àquilo como algo que não pode ser mudado, e se não pode ser mudado ‘tenho que aceitar com resignação’. Ali no meio dos ‘mumificados, esses poucos reconstroem suas vidas, descobrem o amor, amizade, aprendem tantas coisas e percebem que a vida só fica mumificada para os que perdem a capacidade de a todo momento descobrir prazer nas pequenas coisas. Esse mal não alcança apenas os que entram nos ‘oitões’(sententões, oitentões, noventões, etc), mas também, os de menos idade biológica que estão com a alma envelhecida.

Querida recantista, consegues passar para o papel essa linda história com toda riqueza que há no teu coração? Creio que sim. Esperarei cem anos. Quando estiver pronta, se não me encontrares no endereço tradicional, procure-me no Casarão das Múmias... De uma coisa fique certa: tentarei fazer parte do último grupo.

18/04/2011

Ione Sak
Enviado por Ione Sak em 18/04/2011
Código do texto: T2916650
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