À deriva.
Era apenas um dia ensolarado como qualquer outro, fosse frio ou chuvoso nenhuma diferença faria para Audaz. Estava atracado naquele cais já fazia muito tempo, um tempo que êle não sabia ou não queria contar. Apenas o oscilar da maré, o ranger das amarras ou o passar ruidoso de alguma tripulação desembarcada quebravam a sua quietude.
Recordava o seu tempo na ativa e suas viagens, umas tranqüilas outras tempestuosas, os portos que visitou e principalmente os seus comandos. Nem sempre foi capitaneado à altura do que mereceu, mas sempre ofereceu o seu melhor não apenas por dever de ofício e sim por amor. Apenas uma Capitã conseguiu comanda-lo por um período mais longo, porém desistiu e assumiu o controle de um navio mais dócil e em rotas menos arriscadas, dela Audaz guardava as melhores recordações.
Quando novo eram sempre suas as cargas mais preciosas e as melhores travessias, mas agora estava velho e parcialmente desaparelhado. De sua mastreação, parte foi retirada, outra se perdeu como se perdem coisas pela vida. Estava ali contido por amarras tão desgastadas quanto ele mesmo, um dia após o outro até aquela noite.
O vento começou que começou a tardinha transformou-se em violenta tempestade, as vagas varriam o convés e escorriam para seus porões ameaçando sua flutuação, as ondas retesavam as amarras e era certo que estas não suportariam muito mais tempo. Contudo, Audaz não sentia medo e sim uma espécie de excitação, uma sensação que não sabia definir mas que vinha do seu íntimo.
As cordas que o continham romperam-se e ele foi lançado em direção ao vasto e escuro oceano. O impiedoso temporal o açoitou, porém nem a escuridão ou o desconhecido o assustavam, seu coração valente já tinha sido posto muitas vezes à prova. O amanhecer com céu claro e límpido o fez pensar na sua boa sorte, melhor ir a pique e repousar em mar profundo do que ficar atracado morrendo aos poucos e ficar sem um comando à bordo é o mesmo que ter um coração vazio. Não iria demorar muito e logo tudo estaria acabado, seus porões repletos de água logo o levariam ao seu descanso.
Um barco se aproximou, uma elegante nave de velas muito brancas se preparou para abordar Audaz, e este só percebeu a sua aproximação instantes antes do lançamento dos ganchos de abordagem. Audaz impressionou-se com a beleza daquela nau, Coração de Anjo era um barco perfeito em tudo. Logo que os cascos se tocaram Audaz sentiu o toque suave dos pés de Angelina, a Capitã do Coração de Anjo, ela observou o estado do convés e ordenou a drenagem dos porões.
Impetuosa, Angelina decidiu não rebocar o velho barco e equipando-o com velas de reserva assumiu o controle e o pôs a navegar. Audaz ao sentir no timão o toque delicado das mãos de Angelina, esforçou-se para manter o ritmo e mostrar o seu potencial, talvez assim ela reclamasse a sua posse, ela o havia encontrado abandonado à deriva e portanto ele lhe pertencia, era o seu direito.
Disposto a mostrar o seu valor, Audaz utilizou toda a sua experiência de mar para distanciar-se de Coração de Anjo, mas este traiçoeiramente colocava-se na sua popa a fim de cortar o vento e retardar-lhe a marcha. A disputa continuou até a chegada ao porto onde Audaz foi novamente atracado, ali ficou na segurança de novas amarras aguardando a chegada de sua nova Capitã.
No dia seguinte Audaz viu que o Coração de Anjo havia zarpado e só lhe restava agora aguardar o seu regresso. Passaram-se meses e então numa noite ouviu os marujos dizendo que Angelina não o queria, para que precisaria daquele monte de madeira podre se tinha uma bela nau a seu dispor. Compreendeu então que ela o tinha devolvido por honestidade ou apenas por piedade e que o fizera navegar novamente só por um capricho.
As noites seguintes pareciam ainda mais negras, Audaz sofria como os velhos barcos abandonados e chorava rangendo e estalando as tábuas do convés.
Naquela última noite outra tempestade ainda mais terrível castigou o porto, vária embarcações foram a pique, outras foram atiradas para a terra e feitas em pedaços. Audaz prevendo que esta também seria a sua sorte forçou as amarras e as conseguiu partir, estava livre novamente e virando a proa para o oceano mergulhou na escuridão seguindo um rumo incerto. Seu fim talvez fosse desmantelar-se em algum recife, encalhar em uma praia desconhecida ou o frio fundo do mar, mas para Audaz não faria diferença alguma, pois ele continuaria navegando rumo ao seu destino