Tempos idos e felicidades tantas
Não sei o porquê da nostalgia, mas pus-me a recordar de tempos idos e felicidades tantas. A infância chegou em lembranças coloridas, com gosto de dias longos e de suaves brisas. Eu, menina meiga de cabelos longos e loiros, era a “caçuleta do pai”, como ele mesmo dizia, o pai de dez filhos. Cercada de muito carinho, crescia lá na Fazenda São Pedro, no município de Bandeirantes, hoje Mato Grosso do Sul, na época, ainda Mato Grosso.
Minha mãe era mulher forte, honrada, trabalhadora. Nossa vida seguia seu ritmo de lida na terra e respeito às coisas do céu. Tementes a Deus, criados no respeito à divindade, à natureza e às pessoas. Crianças não se intrometiam em conversas de adultos. O pedido de bênção aos pais, tios, padrinhos e avós era sagrado. E como sinto falta daquele “Deus te abençoe” dito com tanta ênfase e com tanta fé! Não tinha como não me sentir abençoada! E na maioria das vezes em que precisávamos ser advertidos, nossos pais apenas nos olhavam e já sabíamos o que aquele olhar dizia. Pais sem instrução escolar, mas com enorme sabedoria. Lembro-me de mamãe dizer: quem rouba um botão, rouba um caminhão! Sábias palavras...
Abençoada também era a terra que nos dava tanto! Ainda hoje me recordo das “ondas” feitas pelo vento na plantação de arroz que se perdia de vista. Verdinha, em um tempo, dourada em outro, quando os cachos se enchiam de grãos maduros. Inesquecível visão, motivo para se agradecer a Deus por ter olhos perfeitos!
No quintal da casa muito humilde havia tudo o que se precisava para viver: o gado que fornecia o leite e a carne. Os porcos, a carne e a banha. A criação de galinhas era tamanha que não se conseguia consumir tantos ovos. O maxixe, o quiabo, a batata doce, o jiló eram colhidos na hora de serem preparados. A melancia era trazida da roça em sacas e só as docinhas eram consumidas pela família, as outras serviam para alimentar as galinhas e os porcos. As mangas, de diversas qualidades cobriam de amarelo o chão, na sua época própria. Laranjas, mexericas, limas, goiabas, faziam a nossa alegria. Da mandioca do quintal mamãe fazia também a farinha e o polvilho. Ah! Aqueles bolos de polvilho, e o biju... Quanta saudade! Nem sabíamos que o biju ainda seria um prato tão procurado, mas com outro nome: a tapioca.
A plantação de milho era fonte de muitas delícias: milho assado na brasa, milho cozido, curau, bolo. Os poucos vizinhos eram convidados para fazer pamonhas, em dia de festa, quando a conversa animada e a alegria eram os ingredientes principais.
O engenho de tração animal e as enormes fornalhas produziam maravilhas. Na madrugada já ali se trabalhava. Garapa, melado, puxas, rapadura simples, de leite, de amendoim, de massa (com mamão verde ralado), doces de laranja, de mamão cortado, mamão ralado, e outros tantos ali eram produzidos. Era preciso aproveitar a cana, e fazer os doces para o consumo de muitos meses. Quantos doces... quanta doçura... quanta alegria! Às vezes, para o meu contentamento, papai me colocava em cima do cavalo, que puxava o engenho, para dar umas voltas. Só um pouquinho, ele dizia, coitado do Sereno (o cavalo) ele já está velho e cansado!
E na época das guaviras íamos colhê-las e nos deliciar. Sabor incomparável, acontecimento do ano! Que deleite! Eram tantos os pés da fruta que podíamos escolher as maiores, as mais doces...
Entretanto, se podia dizer que não tínhamos nada! As roupas, compradas uma vez ou outra, eram repassadas para os irmãos mais novos. E não tínhamos brinquedos, nem bijuterias, nem enfeites! Nada de bonecas, de pulseiras, nem de carrinhos ou aviõezinhos, ou patins. Mas pra quê bonecas? Mamãe as fazia de panos, tão lindas de cabelos longos! Patins, pra quê? Havia o Pitoco, o nosso cachorro, que nos arrastava pelo quintal... era só sentarmos numa saca de estopa que ele vinha brincar conosco, para nossa diversão e encantamento dos adultos.
Embaixo dos pés de mandioca, aqueles bem velhos e altos, construíamos as nossas “casas”, bem varridas, com fogão e tudo! E em nossas “casinhas” tínhamos quintal também, com vaquinhas, cachorros, galinhas e porquinhos feitos por nós: corpinhos de alguma fruta e perninhas de pau. As frutinhas pequenas eram os filhotes. Uma gracinha! E dos talos das folhas da mandioca, que são vermelhos, fazíamos lindos colares e pulseiras. Do jardim da mamãe, pegávamos pétalas de rosas para colocar em nossas unhas e torná-las da cor e tamanho que desejávamos. Hummm... ficávamos tão chiques!
À noite, sem energia elétrica, fazer o quê? Nem conhecíamos televisão... vídeo-game, então... mas, como era bom! Depois do jantar feito no fogão à lenha, sentávamos no “terreiro” e o céu coberto de estrelas era o nosso encanto e a nossa companhia. A conversa da família tinha o fundo musical oferecido pelo grande rádio à pilha sintonizado na Rádio Nacional de São Paulo. Músicas com letras românticas e ingênuas eram ouvidas e cantadas.
Mas o tempo passou, nós crescemos e precisávamos estudar. Decisão tomada, as terras vendidas e aquele lugar abençoado ficou só na lembrança. Lugar onde não tínhamos nada, pela visão consumista de hoje. Lugar onde tínhamos tudo, pela visão da criança que ainda vive em mim, e continua a amar aquele pedaço de chão. Lugar onde vivi doces e inesquecíveis dias! De tempos idos e felicidades tantas...