No Caminho de Casa

Hoje eu vou cantar para o vento que me leva e me trás o cheiro das coisas, enquanto caminho de volta pra casa, depois de mais um dia estressante, povoado de dores e gritos de gente esquecida pelos homens num Posto de Saúde. Os quarteirões vão passando, e eu ainda ouço os lamentos dos idosos e sinto o odor das suas bocas de féu sedentas implorando .

Os pensamentos parecem moscas agorentas que vão me acompanhando. A palavra ofensiva, os traços duros nas caras criaram asas e agora sobrevoam e invadem minha tela azul . Até o retrato dele, ou daquilo que eu julgava amor, se revela no meu laboratório íntimo, todo rabiscado de desilusão. Um retrato que caminhou junto a mim tantas vezes como um anjo, agora virou lixo emocional; foi transformado em cinzas, que é como acaba todo falso amor. Em contraponto, na abóbada de minha capela interior, a imagem sagrada do meu pai se estende num painel colorido lindo que me impregna de saudade. Ainda posso sentir seu calor, minutos pós-partida, e os beijos que distribuí no seu rosto em uma maca de hospital, completamente inerte e vitorioso, como se a morte fosse um prêmio Nobel da Paz.

Não sei por que, sempre em minhas caminhadas, essas imagens vão se projetando. Às vezes, chegam a cobrir o sol como um eclipse. Essa projeção de slides, em série, nos cantos da lembrança me remete a um *“locus-horrendus” que acinzenta as cores da alegria de uma tarde linda de sol do Rio; uma sombra que não sai de mim. Mesmo assim não me sinto totalmente triste. Em todas as partes deste percurso, percebo que alguma coisa em mim, alada, automaticamente se liberta e vai ao encontro da luz que inunda todas as coisas e seres, até o lixo espalhado no caminho. É como se eu fosse uma borboleta e a vida fosse uma flor com espinhos. Vou caminhando, como se leve eu voasse, e vou beijando tudo. O mundo é maravilhoso e triste, mas o sol tem o meu endereço e faz da minha pele um tapete mágico. É pena que o ser-humano produza tantas desgraças sem perceber que, a cada dia, uma tarde ensolarada se despede para nunca mais.

Sexta-feira - 1º de Abril de 2011

* "Locus-horrendus" - expressão latina que significa "lugar horrível".