O que Antoine não sabia - Parte I
Antoine caminhava tropeçando em si mesmo,
corpo frangalhado, suor já escasso,
ossos rangendo e teimando em cooperar.
Sua casa tinha sido levada pelos ventos, pelos cálices encardidos da fé,
coisa tão rápida que nem deu pra dizer adeus
era melhor pensar que foi obra do divino,
ou uma estrepolia deste mesmo divino.
Algumas cartas sobreviveram a todo caos,
poucas peças de roupa, alguns aventais,
aquele rádio velho que funcionava só quando queria,
e quatro vidros de remédio vazios encardidos.
Antoine tinha um endereço para aportar o que sobrava de si,
estava com fome fazia horas, fazia sempre,
corpo cheirando a fuligem que nunca será expulsa dali.
"Vai embora daqui, seu vadio, corre, ou chamo os cães pra te estraçalhar..."
Ele não temia cair nos bueiros, nem tampouco se lambuzar no esgoto
das almas, que sempre fora seu refúgio mais fraterno. Pra ele o que valia mesmo a pena era apenas um copo de gim.
Também não se fazia de rogado diante daquele som manco das festas
que sempre lhe foram tão caras e tão ausentes ao mesmo tempo.
Ninguém acreditaria que, por trás daquele zumbi repugnante, um dia existiu um homem que fora jogado nestes confins só pra traduzir o que fora abandonado nas ancas delgadas de Madame Jerineux.
Ninguém acreditaria que aquele nômade de fala retorcida e arredia, tinha certa feita colocado toda sua história numa trouxa e caído neste mundo pra nunca mais.
Antoine sabia que estava tatuado nos seus caminhos esta lânguida e desafinada alegoria. A mesma carcaça que hoje se faz tão enrigecida e rouca, outro dia era sua mãe dando-lhe as tetas pra se fartar até a morte.
Que os tempos sejam reféns o suficiente para não cegar a face mais putrefata deste carnaval, que agora está submerso nas nossas colchas, nas fronhas fugidas da minha paixão.
E você, que está comigo nesta farra sem cabresto, tenha a ginga para não se aninhar nas barbas do inimigo. E nem se atracar com a primeira fada manca que cruzar o seu caminho.
Que a terra dos céus seja leve pra você.
(continua)
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