O perdão dos anjos
Eu só não queria aquele silêncio após os tiros, e o corpo estendido no chão me olhando com olhos revirados e o sangue escorrendo quente e sujando meus sapatos. E a fumaça do cano quente do revólver calibre 38 subindo até a janela do oitavo andar e acordando uma senhora asmática que se sente obrigada a ir até a janela em busca de ar e nos vê, e me sinto como pego em flagrante num beco escuro com um cadáver e uma arma na mão - e é isso que acaba de acontecer. Mas do oitavo andar ela pouco vê, além da poça de sangue escuro e espesso e eu sumo na neblina com aquela sensação estranha de ter escolhido tirar a vida de uma pessoa. E as horas passam, as pessoas vem e vão, todas encolhidas dentro de confortáveis casacos de lã, eu tento achar um rumo pra seguir e eu tento achar algo para me ocupar enquanto a madrugada segue correndo em minha volta e me engolindo em uma penumbra escura e mal-cheirosa. Tenho a mão trêmula segurando a arma desde o último disparo e assim caminho atravessando a cidade, vasculhando os becos em busca de algo que me preencha, seja uma dose, um segredo ou um aviso qualquer colado na parede. Notas sobre o fim do mundo. Notas sobre garotos perdidos. É isso que me agrada, mas também preciso me esquentar, sinto meus pés congelando e não tenho muito o que fazer. Sinto a ponta dos meus dedos geladas e elas vão ficando roxas aos poucos, é como se na ponta de cada dedo eu tivesse um cubo de gelo com unhas. Unhas sujas e agora que percebo, com vestígios de pólvora. Este cheiro encrunhado em mim. Sangue e pólvora são os cheiros do ódio. O amor deve ser leve e agradável como o perfume de flores no sol. Mas é de noite, o sol está longe, e perfume é algo que não se encontra nas ruas, nem nos jardins do esgoto. Enquanto isso eu vou andando até acabar meu combustível - benzedrina, vodca, cocaína, todos os pedaços destroçados da minha alma chacoalhados numa garrafa envolta num papel escuro - até achar outro posto de gasolina com suas lojas 24 horas. 24 horas aceso rodando sem parar. Escuro como a sujeira que escorre dos bueiros, negro como a carne dos errantes. Degredado. Busco um confessionário para selar meus erros, mas nessas ruas de letreiros estonteantes só descanço meus olhos em mais erros e esquinas podres. Busco um lugar onde os anjos me abracem, longe das garras de aço dos demônios dos porões escuros da cidade, das sarjetas, dos corações...
Enquanto aguardo sentado no parque sozinho, tomando a última dose do meu terror engarrafado, sentindo o quente do cano apertando minha perna, penso naquele corpo, atirado no beco, atrás de uma poça de sangue. E uma viatura passa apressada com dois homens brancos dentro. E meu terror e minha busca continuam...