Talvez só sobre isso: caixas e mais caixas
Rascunhos de desenhos e de poemas
Mal divisados no papel amarelecido
Que o tempo só serve mesmo para isso
Para estragar a beleza de todas as coisas
Pondo pacientemente nelas o pó das horas
Talvez só sobre isso: a memória dos dias
E uma quantidade enorme de fotografias
Nas quais se esquecem as datas e os nomes
E todos os que sorriem em torno da mesa
Se fartaram tanto de viver e morreram...
Havia festa: e isso toda foto bem o atesta

Talvez só sobre mesmo nada além disso
O silêncio atônito diante de tudo que poderia ter sido
O absurdo silêncio diante do inevitável que não foi
E nossas carcaças carcomidas arrastando sonhos
Escondendo no pensamento a tristeza do que não é
E além de velhos nos tornemos mais velhos e tristes
Na procissão de nossas queixas e desculpas tantas
Rezando para a morte enfim trazer o real silêncio
Embalando esquecimentos em olhares absortos
No morto desejo de não mais olhar a hora que passa
E passa e nos arrasta e leva e devora por dentro e por fora
O tempo que é inimigo de todas as pobres ilusões
Reina sublime e soberano sobre nossa efemeridade
Desejo de eternidade encoberto pelo pó de tanto nada

E tudo o que se quis e o que não se quis tanto faz: não se fez
Deixar de viver para sonhar viver e querer viver outra vez
Tudo o que se diz e o que não se diz tanto faz dizer talvez
Outra vez a vida que assusta e serve como desculpa para não ver
Que entre vida e sonho está o ir e o vir, partir e voltar, tentar
Cair e levantar, caminhar por entre as trevas dentro da selva
Esquecer o medo da morte e com muita sorte poder viver até ela
Ela, que é amiga do tempo, que vem sempre bem a tempo
De nos tirar pacientemente todo o pó depositado nas horas
Ela que tão indesejada como terrível momento derradeiro
É que nos devolve inteiros para a pureza do momento primeiro
Para sermos filhos do tempo e a um só tempo o seu alimento...
Marcos Lizardo
Enviado por Marcos Lizardo em 14/03/2011
Reeditado em 25/07/2021
Código do texto: T2848359
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