Torrente
De tanto tentar conter as águas a represa um dia estoura e talvez a brutal força com que espalha seus mananciais devaste a tudo, carregue árvores, gentes e sonhos. De tanto conter as águas tornam-se turvas e gélidas, em seu estranho poder podem acabar com vidas e ao final tornar-se ininteligível a nossos olhos inocentes, seus grandes desvarios inconsequentes. De tanto conter eu já não consigo guardar essas lágrimas devo chorar até que se tornem um riachinho plácido, algo onde os girassóis possam crescer à beira e onde os pássaros possam matar sua sede à margem. Fui pela rua e vi a cidade vazia e essa rua dominou meu pensamento, ali um velho fumando uma gimba juntada do chão, mexendo no lixo e coçando a bunda, me sorriu um sorriso desdentado e medonho. A florista da esquina aguarda não sei quem comprar as flores pra poder ir embora sambar seu carnaval. Os esquadros dos edifícios assimétricos se mesclam com a história dessa cidade em edifícios tombados do patrimônio histórico e que em breve algum incendiário bem pago vai exterminar sem querer pra deixar só a fachada e fazer um estacionamento. As máscaras no museu me olham. A do palhaço me sorri estranho, uma lágrima fugidia cai do canto esquerdo do meu olho direito e trato de juntá-la, sem vexames mesmo que a cidade esteja vazia e ninguém esteja olhando. A máscara se ri de mim. Vou embora atormentado por meus medos e esbarro na estátua do adônis com sua folha de parreira, tenho vontade de levantá-la, toco em seus músculos e lá vem o guarda, ta bom ta bom sei que não posso tocar e já estou de saída. Na praça algumas prostitutas tentam vender a ninguém seus corpos carcomidos pelo tempo e pelos vícios, a cigana me chama e me diz la suerte la suerte e eu puxo a mão com certo asco. Ela sorri dos seus dentes empretecidos e me diz oye guapa no te voy a genar e parto ventando. Alguns fregueses no café, alguns bebâdos fantasiados caídos pelos cantos. O verde arrebatador da praça e meus pés ligeiros que se dirigem ao porto. No caminho passo pelo portal e o dono do sebo me sorri da porta pergunta por você e eu respondo nem sei. Nem sei de mim. Meus passos vão ligeiros ao rio, será que lá posso em meio a tanta podridão afundar e esquecer... não tenho porque voltar atrás eu não fui pra frente, estacionei no mesmo dia em que te vi partindo virei as costas pra não ver e pra não sofrer nem implorar e nem te permitir me ver chorar e me fui. O avião zarpou e eu não vi, o tempo passou e eu não vi, estacionada ali na tua última frase que ficou retumbando em minha mente até agora... deixa a Deus... nem Deus pode me salvar agora que a água toma conta de mim, em minhas entranhas em meu ser me tornando líquida, a vaga lembrança dos teus cabelos, das tuas fãs, da tua necessidade de ser adorado, do teu ego enorme, do tanto que não fui suficiente, dos teus gestos de puxar a minha calcinha pro lado, dos teus enganos quanto a quem sou, das facetas podres que eu desconhecia de mim e só a ti mostrou-se e eu nem sei porque. A minha vida santificada que sempre levei, o autocontrole que sempre tive, a loucura a que me levaste e este fim. Entra-me agora a água pela boca, ela é doce e cálida, acre e ácida como um líquido que sempre gostei de sorver o que te dava o maior prazer. Por que nunca deixaste de me perseguir e por que nunca puseste fim a tudo e me deixaste suspensa no ar, a esperar que tu visses com teus próprios olhos que não, não há ninguém mesmo como eu, pois cada um é único e tu te enganas a pensar que eu sou o que não sou. Eu fui fiel. Em nenhuma ocasião a que achaste que eu supostamente te trai eu estava contigo. Diferentemente de ti que foste capaz de me trair mesmo nos nossos 8 meses perfeitos... e ao final traíste a minha confiança. Já que não posso botar fim a esse amor e nem a tua lembrança e já que não posso mais conviver com essa maldita lembrança eu agora vou por fim a tudo e me dissolver nessa água turva. Nada mais justo já que pra você eu sou a mais suja das criaturas, a mais vil, aquela que poderia te trair a cada passo e no entanto, amor meu, eu só tinha olhos pra ti, eu sempre só tive olhos pra ti... alguns transeuntes se apressam em vir ver o que estou fazendo espero que não venham me retirar enquanto afundo vi de relance alguém chamando a guarda mas a pedra me puxa pro fundo agora mais rapidamente talvez eu fique feia no funeral pede a minha mãe não te esquece meu último desejo é ser cremada se pelo menos isso não fizeres eu juro que venho puxar os teus pés toda noite.